domingo, 20 de setembro de 2020

A MERCANTILIZAÇÃO DA FÉ AJUDA A ETERNIZAR AS CAUSAS DO SOFRIMENTO SOCIAL E A DIFICULTAR A SUA SUPERAÇÃO

dalton rosado 
AS RELIGIÕES NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES SOCIAIS 
Tem sido frequente nos últimos milênios a interferência das crenças religiosas nos contextos sociais em processo dialético histórico. 

Tal fenômeno ora se processa contra o que está posto, ora no sentido contrário, para consolidar aquilo que deseja a ordem dominante enquanto poder que se pretende perpetuar.

Concomitantemente à questão religiosa em si, o cristianismo, p. ex., nasceu sob a égide do inconformismo dos setores subalternos e minoritários do Império Romano que eram oprimidos pela ordem escravista de então. 

Os preceitos cristãos de partilha da produção contrariava os cânones jurídicos escravistas do Império Romano (Roma tinha 1 milhão de habitantes, dos quais 80% eram escravos), daí este ter prendido Jesus Cristo como subversivo e, num julgamento farsesco e manipulado, o condenado à morte. 

Contudo, as ideias do cristianismo, entremeadas da crença religiosa,  eram de tal forma revolucionárias que, mesmo perseguidos, reunindo-se clandestinamente em catacumbas e usando simbologia identificadora (os peixes), os cristãos conseguiram expandir rapida e consistentemente o seu movimento.

Até que, três séculos depois, o poder oficial desistiu de extinguir o cristianismo e optou por cooptá-lo como forma de controle e desvirtuamento de seus preceitos revolucionários. 

Daí em diante, a religião cristã no mundo ocidental e outras crenças no mundo asiático e africano sempre tiveram forte liame e conexão com o poder vigente. 

Nos últimos séculos, o o cristianismo vem influenciando fortemente o curso das relações políticas de grande parte da humanidade (principalmente no mundo ocidental).      

Na Idade Média a Igreja Católica se confundia com o poder monárquico feudal de tal forma que havia uma simbiose de ordenamento jurídico e poder absolutista, sob forte orientação religiosa, que, p. ex., condenava a usura praticada fora das permissões concedidas à aristocracia rural, aos nobres e à Igreja.

A então emergente relação social que se formava a partir do desenvolvimento da mercantilização era tratada como algo pecaminoso, daí sua necessidade de afirmar uma nova ordem jurídica que lhe fosse consentânea; isto provocou o cisma católico, dando origem ao cristianismo pentecostal de hoje. 

A mutação das relações sociais era entravada/retardada pela exploração de servos (na Europa) e de escravos negros africanos e índios (nas Américas), daí o imperativo de entronizar-se a exploração pelo salário (escravização indireta). 
A corrente que ascendia teve como expressão ideológica 
a doutrina iluminista, cujos pensadores se aliavam à reforma protestante de Martinho Lutero, autor das famosas 95 teses protestantes. 

Lutero (corroborado pelo seu seguidor mais novo João Calvino) e Zuínglio  foram os precursores da chamada Reforma Protestante, que teve em Thomas Münzer, um ativista dissidente do catolicismo vigente (constituiu-se em destacado revolucionário defensor dos camponeses, que eram bastante numerosos na ainda incipiente formação urbana pré-industrial).

Lutero foi bem mais adesivo às ideias mercantilistas; Münzer, às lutas camponeses, que o levaram a ser preso e executado por subversão à ordem escravista existente.

Estes exemplos históricos servem para demonstrar o liame que, no curso da História, tem havido entre política e religião. 

O  eminente professor Florestam Fernandes, de saudosa memória, assim avaliou o papel desempenhado por de Lutero e Münzer:
"Nenhum dos dois iria alterar o curso da história, embora fossem, à sua maneira, homens lúcidos e combativos e, para os seus respectivos círculos socais, homens-providenciais e heróis. 
Entravam nas correntes de transformação de uma época de crise de civilização e, por aí, se tornavam representativos; exerciam influência sobre os demais e a coletividade, concorriam, em suma, para que as correntes profundas da história subissem à superfície e atravessassem o coração, o cérebro e o comportamento dos homens".
Atualmente, em especial no caso brasileiro, mas como fenômeno comum a todas as Américas, estamos a observar o forte apelo religioso pentecostal em sintonia com o poder político mais conservador e voltado para a corroboração da lógica decadente do capitalismo. É a tentativa de orientar a aceitação da opressão, com a promessa de uma vida celestial venturosa após a morte.

Hoje, em cada grande cidade brasileira existe uma quantidade imensa de organizações ditas religiosas que, mediante manipulação próxima ou equivalente às lavagens cerebrais, arrancam todo o dinheiro e bens que podem de seus ingênuos seguidores. Atuam segundo o padrão das práticas mercantis e sua ferramenta de vendas é uma retórica apocalíptica e tosca, derivada do fundamentalismo bíblico mais rasteiro.

Sob as mais variadas nominações, desfrutando de aberrantes isenções fiscais, asseguram escandalosa prosperidade a seus autoproclamados pastores, missionários, bispos, etc. 

E obtêm poder político graças à formação de bancadas de parlamentares e governantes eleitos com os votos dos desventurados fiéis, que supõem estar seguindo o melhor caminho da salvação espiritual. 

Trata-se, enfim, da conjunção perfeita para a permanência das causas do sofrimento social e entraves à sua superação.

O direito à crença religiosa deve ser preservado como direito individual inalienável, mas o charlatanismo deve ser combatido como um crime de lesa-humanidade que se aproveita de uma população desesperada em busca da transcendência de suas agruras na Terra. 

Pergunta-se: os curandeiros televisivos que se tornam milionários a ponto de poderem comprar importantes meios de comunicação, casas de luxo e aviões, além de construírem templos cuja ostentação afronta a pobreza dos fiéis cujos dízimos sustentam tal bonança, devem ter taxadas as fortunas que amealham e que são preservadas sob as contas bancárias de entidades religiosas?

Sou absolutamente contrário à cobrança de impostos pelo Estado, simplesmente porque tenho absoluta clareza quanto ao fato de que a opressão exercida por esse mesmo Estado é subvencionada com a cobrança de impostos a uma população economicamente exaurida. 

Mas a minha oposição é ainda maior e mais abrangente. Sou contra as relações sociais de produção capitalista e suas categorias fundantes porque são elas as promotoras de miséria mundial ora em processo de disseminação graças ao limite interno de expansão capitalista e consequente definhamento provocado pelos seus próprios fundamentos.

[Trata-se de uma relação social que, se antes já era majoritariamente excludente, agora se tornou insuportável!]

Assim, entendendo que a manifestação de culto religioso deve ser livre para o ser humano como direito individual inalienável, gostaria que fosse suprimida a mercantilização da fé e o fervor religioso de tantas igrejas e pastores passasse a ser transmitido aos fiéis de modo desinteressado.

Gostaria de ver os traficantes de drogas (e não estou comparando uns com outros) comercializarem suas drogas pelo simples prazer de verem enlouquecidos os consumidores que foram por eles viciados e escravizados. 

Entendo que a superação da relação social sob a égide da forma-valor, com a implantação de uma ordem social horizontalizada, livre da escravização indireta do trabalho abstrato produtor de valor, seria a maneira viável de correção das muitas distorções sociais que vicejam neste período de crise agônica capitalismo.

Passamos por um daqueles momentos históricos nos quais uma nova ordem se prenuncia como necessária e sofremos as dores desse parto de difícil realização. Mas devemos ser os obstetras de uma nova vida, saudável e promissora.
Por enquanto, essa decisão legislativa de conceder perdão de impostos derivados de relações (pretensamente religiosas e verdadeiramente mercantis) que geraram lucros empresariais somente demonstra quão mal representados estamos na democracia burguesa, que mais parece uma arapuca legitimada por nós pelo voto. 

O contrário da democracia burguesa não é a ditadura, como querem nos fazer crer. Não é o caso de ruim com ela, pior sem elaA alternativa real é uma organização social descentralizada, horizontalizada e que priorize a satisfação das necessidades humanas e o bem comum. 

Ela, contudo, somente será possível com um modo de produção social que lhe seja consentâneo. (por Dalton Rosado

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