sexta-feira, 7 de agosto de 2020

DE TANTO ENXUGAR-SE GELO NA SOCIEDADE DA MERCADORIA, ELA ESTÁ DERRETENDO...

Há práticas sociais sob o capitalismo que, mesmo não havendo dúvidas quanto à sua nocividade, são combatidas de forma tão superficial e displicente que continuam existindo.

É como enxugar gelo ou, se quisermos exagerar, secar um iceberg com guardanapos de papel.

Como se admitir que o processo eleitoral seja expurgado da influência direta ou indireta do poder econômico por uma legislação que condena tais práticas e, ao mesmo tempo, sejam o Ministério Público e a Justiça eleitoral, instituições do Estado capitalista, os incumbidos de processar e julgar tais delitos???

Como se pretender que o parlamento burguês, cujos membros, em sua grande maioria, sempre foram e continuam sendo eleitos sob a influência do poder político-econômico capitalista, legisle em favor dos explorados por esse mesmo sistema???

Como se querer que a estrutura vertical dos partidos políticos respeite o seu (falacioso) programa estatutário e democraticamente acate a vontade majoritária dos seus membros, se a hierarquia de mando partidário, especificada nos estatutos e corroborados por lei, estabelece privilégios ditatoriais aos dirigentes que se perpetuam indefinidamente como definidores das regras e responsáveis pela condução partidária??? 

Como se combater eficientemente a corrupção com o dinheiro público se o custo eleitoral para a disputa de novos mandatos é proibitivo para ser bancado pelos meros salários de parlamentares e governantes; se as obras públicas e compras de mercadorias são objeto de barganhas comerciais impossíveis de serem coibidas pelas licitações públicas manipuladas; e se os pagamentos que lhes correspondem são feitos com o dinheiro do erário (que somente em teoria é do povo)???

Como se conseguir que o Poder Judiciário resista às pressões políticas, quando a ascensão aos cargos superiores da magistratura (e do próprio Ministério Público, que tem a função constitucional de processar quem escolhe seus dirigentes) se dá a partir de indicações por critérios políticos e corporativos obedientes à lógica do capital???

Como se fazer com que os planos de saúde, que vendem a mercadoria tratamento médico-hospitalar e consultas médicas, sustentando-se na equação contábil de redução de custos e receitas advindas dos contribuintes que deles compram tal assistência, não se guiem pela conhecida mesquinhez na hora mais difícil de cada doente, quando este está necessitado dos seus serviços e hospitais??? 

Como se forçar as escolas e universidades privadas a prestarem uma educação de qualidade também à população assalariada de baixa renda??? 

Como se exigir da escola pública que proporcione uma educação básica eficiente, apesar da conhecida precariedade infraestrutural (prédios e equipamentos) e dos salários aviltantes pagos aos professores enquanto servidores públicos???
Como se pretender que haja segurança pública eficiente e paz social se em toda a periferia das cidades capitalistas grassa a miséria, obrigando os cidadãos a adotarem a estratégia do salve-se-quem-puder??? 

Como se clamar por uma polícia militar que defenda o cidadão se seus integrantes são fortemente tentados a se mancomunarem com o crime organizado, além de terem justificados receios de serem vítimas da guerra urbana entre bandidos e supostos mocinhos

Como se diferenciar o banqueiro que cobra juros extorsivos no cheque especial do político corrupto que cobra pedágio no superfaturamento, bem como do traficante que vende a mercadoria droga que vai escravizar o viciado e levá-lo à morte e/ou ao crime???

Como se almejar que  não haja concentração da riqueza abstrata e material socialmente produzida, medida em valores e capital, se o regime concorrencial de mercado exclui do próprio mercado o produtor ou comerciante que sucumbe diante do poderio econômico predatório e monopolista do seu concorrente mais forte???
Como um trabalhador que recebe salário-mínimo (R$ 1.045) poderia sustentar a sua família (alimentos, vestuário, água, luz, transporte, remédios, lazer, etc.,) e ainda adquirir uma pequena habitação???

Como sequer cogitar-se que, num quadro social destes, o problema habitacional (que requer a cara mercadoria terra urbana, mais materiais de construção, infra-estrutura sanitária e equipamentos sociais como postos de saúde, creches, escolas, transporte, etc.), possa ser satisfatoriamente resolvido sob critérios capitalistas nos países periféricos, neste mundo atual que se divide em raras ilhas de prosperidade e e enormes oceanos de pobreza???    

Como se esperar que haja uma cultura de honestidade se a prática social, que é o critério da verdade comportamental, tem como base de mediação social o roubo do valor produzido em e pela sociedade, mas apropriado individual e indebitamente pelo capitalista, que assim acumula o mesmo capital que lhe servirá de arma na guerra concorrencial de mercado para destruir seus competidores?

Como se entronizar uma cultura de paz se cada ser humano trabalhador (que é glorificado como tal pelo capital para mantê-lo como um idiota explorado) e produtor de valor é adversário do seu semelhante na disputa pelo emprego escravizador???

Como acreditar que os sindicatos possam vir a ser libertadores do jugo do trabalho abstrato produtor de valor se as suas diretorias vivem da estrutura sindical e dos impostos e contribuições pagas pelos associados, não lhes sendo conveniente, portanto, erguerem outras bandeiras que não as de (impossíveis) melhoras dos salários e das condições de trabalho, isto numa economia capitalista depressiva que atingiu o seu ponto de inflexão e prenuncia o seu próprio colapso causado pelo desemprego estrutural crescente???   

Estava certo Nicolau Maquiavel quando escreveu O príncipe, ensinando aos déspotas monárquicos do seu tempo as artimanhas da obtenção do poder e de como nele se manter, de vez que o poder escravista de então precisava de tais artifícios para parecer ao povo explorado que o rei era seu defensor. 

Se por acaso Maquiavel fosse escrever hoje um livro sob os mesmos parâmetros absolutistas do Estado nacional burguês, ele seria intitulado O presidente e o capital, e os conselhos a serem dados seriam os mesmos, pois mesma é a inépcia que prevalece no hipócrita combate às mazelas da democracia burguesa.

Maquiavel dificilmente conseguiria ir além dos engôdos já adotados para iludir os incautos cidadãos, oprimidos sob o disfarce de cânones jurídicos que lhe conferem pretensos direitos e uma pretensa soberania de vontade eleitoral. 

Tais cidadãos, contudo, não só estão sendo garfados enquanto produtores de valor abstrato, como também o são na condição de contribuintes do imposto que sustenta o Estado e suas instituições opressoras (perpetuadoras da dominação que lhes é imposta). 

Trata-se de um colossal jogo de cartas marcadas, cujos atos de enxugar gelo tendem, contudo, a se desacreditar socialmente ao longo do tempo, como tudo que é hipócrita e falso. Por Dalton Rosado

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