sábado, 29 de agosto de 2020

FIM DA COVID-19 COM A IMUNIDADE DE REBANHO E/OU A VACINA? INFELIZMENTE, NÃO SERÁ TÃO FÁCIL NOS LIVRARMOS DELA.

demétrio magnoli
EXTERMÍNIO DO VÍRUS É O CANTO DE SEREIA QUE
ENFEITIÇA A PRIMEIRA-MINISTRA DA NOVA ZELÂNDIA
A Nova Zelândia entrou em lockdown em março, para emergir em maio declarando um triunfo completo: a supressão do vírus. Jacinda Ardern saltou, então, da condição mundana de primeira-ministra ao estatuto mítico de Exterminadora

Duas semanas atrás, Auckland fechou de novo, após a irrupção de quatro novos de casos de contágio. Há, aí, uma lição.

As duas ilhas dos mares do sul, fragmentos remanescentes de um microcontinente parcialmente submerso, berços de uma nação de classe média, formam o lugar ideal para o experimento supressivo. O fracasso prova que o coronavírus não é exterminável —ainda que a Exterminadora insista, incansavelmente, em perseguir seu pote de ouro.

A Alemanha situa-se na ponta oposta da estratégia neozelandesa. Os alemães escolheram administrar os contágios, minimizando os óbitos por meio de quarentenas moderadas e do controle de focos de transmissão pela testagem em massa. No lugar da utopia de eliminação do vírus, eles definiram o objetivo de combater a epidemia com doses limitadas de restrições à vida social.

Os discursos vulgares sobre a vacina inscrevem-se no campo lógico personificado por Ardern. Fala-se da Vacina no singular e com maiúscula. A sua chegada marcaria a Redenção: o alvorecer dourado da imunidade absoluta.
Sob essa ordem de ideias, com tons religiosos, acompanha-se fervorosamente a corrida pela vacina travada por concorrentes estadunidenses, britânicas, chinesas, alemãs e até uma trapaceira russa. A salvação final tornou-se tema de geopolítica global e prestígio nacional. 

Nada indica, porém, que num dia determinado a humanidade celebrará a vida sem vírus em torno de um frasco único de imunizante.

De fato, especialistas sóbrios traçam um cenário mais complexo, de ondas vacinais sucessivas superpondo-se ao longo do tempo. Países e grupos demográficos diversos serão vacinados com produtos diferentes. Em certos casos, os mesmos indivíduos receberão mais de uma dose de imunizantes, ou coquetéis de vacinas. No fim do arco-íris, o vírus não será totalmente exterminado e, por razões genéticas ou recusa à vacinação, restarão frações populacionais suscetíveis à doença.

Inexiste uma nítida, fina linha de fronteira de imunidade coletiva. Os fundamentalistas epidemiológicos celebraram a imaginária supressão neozelandesa enquanto, contraditoriamente, alertavam que o nirvana imunitário só poderia ser atingido após o contágio de mais de 70% da população.

As bruscas quedas de infecções em pontos quentes tão distintos quanto Manaus, Guayaquil e Estocolmo evidenciaram, pelo contrário, que a chamada imunidade de rebanho manifesta-se gradualmente bem antes disso, talvez desde o umbral de 30% de infecções.

Nas áreas que percorrem a extensa faixa da imunidade coletiva, as ondas vacinais adicionarão taxas extras de proteção imunitária a populações já pouco suscetíveis à doença. Em outras, oferecerão graus variados de imunidade. 

Mas o Extermínio é uma miragem, uma lagoa azul no deserto, o canto de sereia que enfeitiça Ardern. Como tantos agentes infecciosos, o coronavírus conviverá com a humanidade para sempre, acendendo pequenas, efêmeras fogueiras localizadas.

"Temos sido o líder mundial na resposta à Covid —podemos fazer tudo aquilo novamente", proclamou Ardern ao decretar o recente fechamento de Auckland. Jacinda mal oculta, atrás da promessa santa de salvar vidas, a meta de inscrever na pedra sua liderança moral. 

Por isso, dobra a aposta, investindo em sucessivos lockdowns para alcançar o que nem a vacina conseguirá. O empreendimento testa a resistência social de uma nação inteira —e, paradoxalmente, só será coroado de um enganoso sucesso se a vacinação em massa não tardar.

A obsessão exterminista é a imagem invertida do negacionismo epidemiológico. Não há ciência alguma nas duas posturas simétricas. (por Demétrio Magnoli)

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