quinta-feira, 11 de junho de 2020

HÁ 50 ANOS, O TRI FOI MARCADO POR UM FUTEBOL QUE AINDA NOS DESLUMBRA E A DITADURA QUE ATÉ HOJE NOS HORRORIZA

Médici pegando carona na glória alheia...
"Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
(...) De que me vale
Ser filho da santa
Melhor seria
Ser filho da outra
Outra realidade
Menos morta
Tanta mentira
Tanta força bruta"

(Chico Buarque/Gilberto Gil)
Aos brasileiros, que desde 2002 não comemoramos a conquista de uma Copa do Mundo, só nos resta consolarmo-nos com as lembranças do Mundial Fifa de 1970, cujo cinquentenário transcorre atualmente. 

A partida disputada no dia 11 de junho (exatos 50 anos atrás, portanto) foi a das quartas-de-final, contra o Peru, que fez então sua melhor campanha nas Copas até hoje mas, mesmo jogando como nunca, perdeu como sempre... 

Não é, contudo, só a consagração nos gramados do México que marcou o ano de 1970 no Brasil, mas também o ápice do terrorismo de Estado, com as torturas e assassinatos desembestados dos que ousamos resistir ao regime dos generais. 

Daí, na série que escrevi sobre nossa participação nos mundiais, eu não ter usado como epígrafe do capítulo dedicado ao tri alguns versos de Pra Frente Brasil (clique no título para ouvi-la), a musiquinha que mais ficou associada àquele triunfo (assim como A taça do mundo é nossa em 1958 e Frevo do Bi em 1962), mas sim os de Cálice. O motivo é óbvio. 
...habituado que era a fazer demagogia no Maracanã.

Eu até que gostaria de conseguir separar o maravilhoso do horroroso, mas o que ia pra frente naquele Brasil não eram exatamente "noventa milhões em ação/ "todos ligados na mesma emoção". E ligados estávamos, isto sim, às maquininhas de aplicar choques elétricos...

Atravessei a Copa como preso político no DOI-Codi/RJ, tomando conhecimento dos gols canarinhos pela gritaria no quartel e recompondo as forças durante a pausa para respirar que as partidas da Seleção nos proporcionavam – pois os torturadores preferiam assistir às belas proezas nos estádios do que protagonizar a rude barbárie nos porões.

Nada impedia que, poucas horas depois, estivéssemos recebendo choques e pancadas, pendurados no pau-de-arara. A gritaria de júbilo cedia lugar aos urros desesperados.


Não, naqueles dias podia até parecer que "todo o Brasil deu a mão", mas havia um abismo intransponível entre as mãos que golpeavam e as mãos que acudiam.


Os que nos diziam comemorem! eram os mesmos que berravam cale-se!ame-o ou deixe-o! e comunista bom é comunista morto. O vinho sorvido nesse cálice era fel para nós.

E, para os que estranharem esta intromissão da detestável política num espaço dedicado ao encantamento do futebol, vale lembrarmos quão determinante ela foi no momento dos acontecimentos.

JOÃO SEM MEDO, AS
 FERAS E O OGRO
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Depois do acachapante fiasco no Mundial da Inglaterra, quando a convocação de um número excessivo de jogadores e o tortuoso ritual dos cortes minaram a união do elenco, o Brasil decidiu definir desde o início um time-base.

Foi como agiu João Saldanha, jornalista e técnico com notórias afinidades com o Partido Comunista Brasileiro, um homem carismático e de personalidade fortíssima (o apelido de João Sem Medo era dos mais merecidos).

Montou o escrete para as eliminatórias com maioria de jogadores do Santos e Botafogo, nossas duas melhores equipes da época. E, para reerguer o combalido moral brasileiro, nada como o rótulo inspirado que o escritor e colunista Nelson Rodrigues criou: as feras do Saldanha

A ideia era que nossos jogadores não deveriam temer nem respeitar ninguém, entrando em campo para atropelar os adversários. 

E foi o que aconteceu nas eliminatórias: o Brasil passou como um trator sobre Colômbia, Paraguai e Venezuela, vencendo os seis jogos, com direito a goleadas. Foram 23 gols marcados e apenas dois sofridos.

Aí, uma conspiração esportivo-militar derrubou o técnico heroico; pesaram fatores como a independência que Saldanha assumia com relação aos repulsivos cartolas e sua relutância em colaborar com o marketing do ditador de plantão. 
Eis uma boa síntese da epopéia brasileira nos gramados do México
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Emilio Garrastazu Médici, o sanguinário, era dado à demagogia futebolística. Ia, p. ex., assistir aos clássicos no Maracanã com um rádio de pilha colado ao ouvido... e batalhões de seguranças ao redor!

Tentando suavizar sua imagem de ogro, Médici sugeriu a entrega de uma camisa de titular ao folclórico atacante Dadá Maravilha, ao que o altaneiro Saldanha respondeu:
"Quem escala a seleção sou eu, quando o presidente escalou o seu ministério ele não pediu a minha opinião".
Yustrich amarelou
Ficou, claro, com a cabeça a prêmio. Os cartolas açularam então contra ele um técnico grosseiro e metido a valentão, que estava vivendo boa fase à frente do Flamengo: Dorival Knipel, o Yustrich.

Com a promessa de que sucederia Saldanha se o derrubasse, Yustrich desandou a atacá-lo de todas as formas, sem sucesso.


Até que levou a coisa para o lado pessoal, atingindo a honra do João, que provou ser mesmo sem medo: apanhou um revólver e foi atrás do difamador em pleno estádio do Flamengo.


Yustrich, o falso ferrabrás, fugiu pulando a cerca, apesar de obeso. Cena ridícula.


E os cartolas, a pretexto de descontrole emocional, demitiram Saldanha, substituindo-o pelo dócil Zagallo.

QUADRADO MÁGICO: BENDITO ACASO!

Tão dócil que os líderes do elenco lhe impuseram a escalação de Rivellino, o reizinho do Corinthians. Zagallo preferia Edu, do Santos, numa armação convencional de 4-2-4.
Líderes do escrete exigiram escalação de Rivellino

Assim, porque ninguém estava realmente aprovando na ponta-esquerda, surgiu, meio por acaso, a grande inovação tática da Copa de 1970: o  quadrado mágico, formado por Gerson, Pelé, Tostão e Rivellino, que não guardavam posições fixas, deslocando-se de acordo com o desenrolar de cada ataque. 

[Na Copa seguinte, o carrossel holandês ampliaria tal rotação, estendendo-a para os demais compartimentos do time.]

Para completar, ficava mais à frente Jairzinho, goleador hábil e oportunista, aproveitando muito bem as assistências dos craques.

Na estréia contra a Tchecoslovaquia, poucos brasileiros viram pela primeira vez uma partida de Copa do Mundo sendo transmitida ao vivo pela TV. A grande maioria ainda era em preto-e-branco, pois raros tinham poder aquisitivo para adquirir os recém-lançados televisores coloridos.
Petras: depois do gol, o sinal de cruz.

Petras abriu o placar e surpreendeu o mundo ao fazer o sinal da cruz (ué, comunistas também são cristãos?! Eles não comem criancinha viva?).

Uma bomba de Rivellino, cobrando falta da meia-lua, restabeleceu a ordem natural das coisas. E o primeiro tempo ainda teve a tentativa de Pelé de encobrir o goleiro com um chute do meio de campo  um dos grandes gols que não aconteceram da história do futebol.

No segundo, só deu Brasil. Belos tentos de Pelé e Jairzinho (2) garantiram a goleada por 4x1, destacando-se os longos e perfeitos lançamentos de longa distância que alcançavam atacantes com pouca marcação.

A partida seguinte foi a batalha dos mais recentes campeões: Brasil (1958 e 1962) contra Inglaterra (1966).

No tira-teima entre os dois últimos campeões, deu Brasil.
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Jogo equilibrado, disputadíssimo, no qual o grande Banks fez defesa antológica, numa cabeçada fulminante de Pelé; em que até nosso mediano goleiro Felix, quem diria, andou salvando a pátria; no qual Astle perdeu chance incrível após falha de Everaldo.

O único gol foi uma pintura: Tostão recebe pela ponta-esquerda, enrola-se com três adversários e, já caindo, consegue passar para Pelé, que talvez marcasse mas, com muitos ingleses à frente, preferiu colocar Jairzinho cara a cara com Banks. Caixa.
Defesa antológica de Banks

Vaga garantida, a partida com a Romênia virou amistoso de luxo. 3x2, com falhas de nossa defesa e gols de Pelé (2) e Jairzinho.

Nas quartas-de-final, a tradição prevaleceu. O Peru, treinado pelo nosso Didi, até que surpreendeu no ataque, comprovando a fragilidade da zaga brasileira (o craque Carlos Alberto; o bom Piazza, sacrificado por estar fora de sua posição; e os limitados Brito e Everaldo).

Em compensação, os zagueiros peruanos levaram o previsível o esperado baile. 4x2, com gols de Tostão (2), Rivellino e Jairzinho.
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DUELOS DE GIGANTES

O outro rival sul-americano foi bem mais difícil. O Uruguai, campeão de 1930 e 1950, vendeu caro a derrota na semifinal.

A partida ficou ainda mais complicada a partir de uma falha grotesca de Felix, que aparentemente fez golpe de vista numa bola que poderia ter agarrado com certa facilidade. 0x1.

Quando o primeiro tempo já terminava, Clodoaldo surgiu como elemento-surpresa para fazer um gol providencial. 1x1.

O Uruguai estava atravessado na garganta dos brasileiros desde 1950

Na segunda fase, o sofrimento durou 30 minutos, até Tostão servir Jairzinho num contra-ataque. Superando um adversário na corrida, o furacão da Copa desempatou.

Os uruguaios foram para cima e Felix se redimiu da bobeira do 1º tempo, fazendo defesas cruciais.

Pelé novamente deixa o mundo extasiado com um gol que não aconteceu: aplica desconcertante drible de corpo no goleiraço Mazurkiewicz e chuta raspando a trave.
Foi a primeira vez que vencemos todas as partidas

No finzinho, a  patada atômica  de Rivellino funciona de novo, para dar números mais categóricos à vitória suada: 3x1.

Veio então o tira-teima entre duas seleções bicampeãs: Brasil e Itália (1934 e 1938). Quem vencesse, levaria a Taça Jules Rimet definitivamente para casa.


O Brasil jogou completo: Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo e Gérson; Jairzinho, Tostão, Pelé e Rivellino.

A superioridade brasileira foi marcante, contra uma Itália que, tecnicamente bem inferior, ainda se desgastara demais para despachar a Alemanha Ocidental na outra semifinal, decidida somente na prorrogação (4x3).

Centro perfeito de Rivellino para a cabeçada de Pelé. 1x0.

A Itália empata após saída atabalhoada de Felix, que foi disputar a bola na intermediária. 1x1.
Eram duas seleções bicampeãs decidindo qual se tornaria tri 

Gerson, o canhotinha de ouro, recebe a bola num corta-luz e desfere chute perfeito da meia-esquerda, aos 21 minutos do 2º tempo. 2x1.

A cansada Itália se entrega de vez quando, logo em seguida, Gerson lança a bola do meio-de-campo e Pelé, na área, apara de cabeça para Jairzinho marcar. 3x1.

O resto foi festa, olé e um gol apropriadamente qualificado de orgástico  pelo Pasquim: Pelé encosta para Carlos Alberto, que vinha na corrida e fez exatamente o que já se desenhara na mente de todos os brasileiros, desferindo um potente chute cruzado que estufou as redes italianas.
O único Mundial conquistado pelo Brasil sob regime ditatorial seria o mais instrumentalizado politicamente de todos os cinco. Ajudou a vender a ilusão de um deslanche econômico, logo desfeita pelos choques do petróleo; e a consolidar uma ditadura sanguinária, que escreveu página vergonhosa de nossa História.

Mas, o que ficou mesmo na memória popular foi a magnífica campanha de nossos craques, que venceram todas as partidas, dando-se ao luxo de sobrepujar, de forma categórica, três das outras seleções campeãs mundiais. 

Então, independentemente dos trastes que pegaram carona nos seus feitos esportivos, é dos jogadores e só dos jogadores que nos lembramos... com muito orgulho! (por Celso Lungaretti)

6 comentários:

Anônimo disse...

Quem também tem me trazido boas lembranças da seleção brasileira na Copa de 70 é o Tostão, em seus recentes artigos na Folha. Tanto dos bastidores quanto dos lances em campo. A cada descrição do craque de uma jogada em direção ao gol, o garoto de 11 anos reaparece em mim e me emociono com cada lance.

celsolungaretti disse...

Os torcedores costumam dar mais valor a quem marca o gol.Eu, a quem quebrou a linha de defesa adversária e criou a oportunidade para o gol.

No jogo mais difícil do Mundial de 1970, o Tostão pegou aquela bola na ponta-esquerda, três adversários foram em cima dele tentando desarmá-lo, mas conseguiu lançar o Pelé.

Este poderia até ter feito o gol, mas, como havia adversários à sua frente e o arremate poderia chocar-se com eles, optou por servir o Jairzinho, desmarcado. Aí ficou fácil.

Para mim, metade dos méritos pelo gol contra a Inglaterra cabem ao Tostão, e a outra metade eu dividiria entre o Pelé e o Jairzinho. Creio que, mais inteligente do que o Tostão em campo, eu só vi um: o Sócrates.

E é também o ex-jogador que se tornou melhor comentarista. Admiro-o muito.

PROFESSOR SALIN SIDDARTHA disse...

Assisti à copa inteira ainda antes de eu cair preso na Barão de Mesquita, no dia 4 de julho de 1970, como consequência do sequestro do caravele da Cruzeiro do Sul. O pessoal não conseguiu "segurar" e, no pau-de-arara, um deles (não vou dizer quem foi para preservar a honra dele) me entregou. Mas me lembro de que certo dia,ainda naquele mês de julho, colocaram-nos ( eu e mais uns 15) numa cela grande que havia no início do andar de cima do PIC, cujo apelido dela era Maracanã, para assistirmos pela TV Globo, frustrados, aquela covardia que fizeram com você, ao vivo, em entrevista. Forçaram-nos a assistir àquilo para que pudessem abater nosso moral, mas, pelo menos, não conseguiram isso comigo, pois eu e todos que lá estávamos vimos o quanto destruíram você na tortura. Por isso, hoje,vibro com seus artigos e rejubilo por você, como todos nós, ter "dado a volta por cima". Leio o Náufrago da Utopia" quase que diariamente. Mas, até hoje eu queria saber o que fizeram naquele dia:eles o levaram para o estúdio da Globo ou filmaram você ali mesmo, no PIC? Lembro-me de que a transmissão foi feita ao vivo! Por favor, se você tiver condições psicológicas de me responder, faça-me o favor, mesmo que seja no privado (Whatsapp 061 99375-5928). Caso não o faça, eu também comprenderei perfeitamente. Saudações Socialistas. SALIN SIDDARTHA

celsolungaretti disse...

Professor,

aquilo foi a chamada "tempestade perfeita". Tudo concorreu para aquele desfecho.

Como comandante de Inteligência, eu sabia que estávamos queimando nossos últimos cartuchos. Então, as quedas em cascata da VPR em abril (nas quais fui arrastado) me levaram à conclusão de que tínhamos chegado ao fim da linha; infelizmente, era correta. Como quase todos nós, recebera oferta de parentes para colocar-me a salvo noutro país, ponderei bem e decidi que preferia afundar junto com o barco. Não via mais nenhum futuro para mim fora do Brasil e fora da revolução.

Mas, a morte de Eremias Delizoicov, colega de primário, companheiro de movimento secundarista e um dos sete que levei junto comigo ao ingressar na VPR, me encheu de remorsos. Foi quando me dei conta de que, se eu decidira ficar até o fim, tinha sido desleal ao não tentar fazer chegar aos sete um quadro realista da situação, para que cada um tomasse sua própria decisão.

Eu decidira pelos sete e um jovem de 18 anos morrera numa situação em que não precisava resistir, porque não havia nenhuma informação vital que a repressão pudesse extrair dele. O sentimento de culpa era insuportável (aos 19 anos, eu ainda não sabia lidar bem com uma situação dessas, talvez hoje soubesse).

Mesmo assim, resisti como pude aos torturadores. Não como o valentão que eu gostaria de ter sido, mas com meu verdadeiro trunfo, ser mais inteligente do que eles. Fingindo-me de mais abalado do que estava, preocupado apenas em não lhes dar o fio da meada para derrubarem a organização, acabei saindo-me razoavelmente bem: não entreguei ninguém do meu nível ou acima de mim, muito menos a área de treinamento (hoje já se sabe perfeitamente que foi outra pessoa que entregou).

Embora companheiros pouco leais depois me imputassem quedas com as quais nada tive a ver (e hoje isto pode ser facilmente verificado), não fui eu o responsável pelas quedas das peças-chave que desmontaram a VPR. E ainda consegui segurar a informação de que, além da unidade de combate que o DOI-Codi havia desmantelado no RJ, havia uma segunda que havia ficado intacta porque o Juarez Guimarães de Brito preferira suicidar-se do que ser preso. como ele a comandava e era o único elo entre aqueles companheiros e o resto da organização, ela ficou incólume e pôde executar o plano que já existia, de sequestro do embaixador alemão.

Aí veio o terceiro golpe na minha moral: deixaram-me de fora dos 40 colocados na lista de troca, embora os critérios da VPR me garantissem lugar no avião. Como não sou ingênuo, deduzi que estavam me atirando culpas alheias nas costas.

O Ivan Seixas, na presente década, atribuiu isto à grande confusão que havia na organização naquele momento; disse que não entrei na lista apenas porque ninguém intercedeu por mim ou tocou no meu nome quando se discutiam quem seria pedido. Fez sentido. Eu não tinha tradição na organização, minha ascensão meteórica incomodou muitos veteranos e quem mais se identificava comigo havia morrido.

Por último, um erro de avaliação me fragilizou ainda mais. Depois de uns 65 dias de preso, os chefões do DOI-Codi da Tijuca estavam furibundos comigo porque perceberam que eu escondera deles informações importantes (as que teriam permitido que evitassem o sequestro do embaixador alemão).

=====================continua=====================

celsolungaretti disse...

=====================continuação=====================

Então, um tenente-coronel veio obter meu depoimento para o inquérito que ele comandava, o da VAR-Palmares no RJ, e um major do DOI-Codi, de passagem, nem sequer percebeu com quem eu estava falando: deu um chute na cadeira que me mandou longe e virou a mesa em cima do meu interlocutor. Este considerou que aquilo tinha sido um desrespeito à sua patente superior e bateu boca no corredor com o major, ambos aos berros.

Quando voltou, eu aproveitei a oportunidade e me lamentei de que, se continuasse ali, seria executado. Seja por compaixão, seja porque queria retaliar o insulto, ele deve ter mexido os pauzinhos no mesmo dia, pois na manhã seguinte fui transferido para a PE da Vila Militar.

Meu erro fatal foi acreditar que finalmente ficaria em paz. Regozijava-me no camburão, certo de que o pesadelo acabara e entraria na rotina de preso político pós-fase "operacional".

Os torturadores de lá, contudo, eram aqueles que haviam sido retirados do esquema porque o Chael Schreier morrera nas mãos deles, causando muito contratempos ao governo (era jovem demais para morrer de ataque cardíaco e de origem judaica, o que levou a Veja a fazer aquela reportagem famosa com imagem de um ambiente de torturas medievais ocupando a capa inteira, além de outras repercussões igualmente negativas na imprensa internacional).

Serem alijados do esquema (que passou todo para a PE da Tijuca, tornado sede do DOI-Codi) fora um grande golpe nas finanças extras daquela corja (o que apreendiam conosco e dividiam entre si, mais as recompensas dos empresários fascistas). Então, tiveram a ideia maluca de me torturar, pensando que poderiam obter de mim alguma informação que os "concorrentes" da Tijuca não haviam conseguido arrancar.

Resultado: meu tímpano estourado e uma aliada que cortou os pulsos (mas se salvou). E, como haviam agido sem o aval do responsável pelo inquérito, a possibilidade inclusive de serem punidos.

Então, tentaram uma última cartada para saírem por cima: foram torturar a citada aliada (naquele mesmo dia ela tentaria o suicídio) e, enquanto ela gritava sempre que lhe aplicavam choques, na sala ao lado eu escrevia a tal carta aos jovens.

O tenente Aílton Joaquim pedira que fizesse uma conclamação para os jovens, no sentido de que não entrassem na guerrilha. Não era minha intenção, mas sentado naquela cadeira diante da folha em branco, com torturadores me dando socos no peito sempre que passavam (depois me dei conta de que nenhum havia sido na cara, para não deixar marcas, o que leva à conclusão de que havia um plano completo em execução), ameaçando "você vai ser o próximo!", me resignei a escrever qualquer coisa.

Mas, enfatizei a única coisa sincera que havia naquele texto maldito: que não valia a pena os jovens inexperientes ingressarem àquela altura na guerrilha, pois a luta estava perdida e eles entrariam para morrer. Isso, claro, tinha tudo a ver com meus remorsos pela morte do Eremias; sabia que os mais experientes realmente já estavam evitando o engajamento e que as organizações só poderiam mesmo atrair os imaturos, incapazes de fazer uma avaliação realista das perspectivas.

Uma meia-hora depois de eu ter concluído, o tenente me retirou da solitária (um espaço ínfimo, imundo, sem água, só com uma boca-de-lobo, no qual passei vários dias só de cueca, tiritando de frio à noite), me colocou numa cela normal com cama, pia, chuveiro e me devolveu a roupa.

Estava em frangalhos, então dormia quase todo o tempo. Sei lá quantos dias depois, me retiraram da cela em plena madrugada e me levaram, dizendo que iam me matar e deixar o corpo embaixo de alguma ponte. Quando já estávamos próximos do Jardim Botânico, o capitão Guimarães (aquele que depois viraria bicheiro e um dos cérebros das milícias do RJ) disse que eu ia ser entrevistado e deveria me manter restrito ao que escrevera na carta os jovens, caso contrário seria mesmo executado, nem sequer voltaria para o quartel.

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celsolungaretti disse...

=====================final=====================

Depois de uns 70 dias de pesadelo, não tinha mais forças para resistir. Nem me lembro do que falei na entrevista (gravada lá pelas 3 ou 4 da madrugada), nem jamais vi, nem procurei ver. O Ivan Seixas disse que o Lamarca, assistindo com outros companheiros, me defendeu: "Está na cara que ele foi torturado".

Esta é toda história. Não fiz acordo nenhum e a única vantagem que obtive foi a de não ser mais torturado. Continuei na PE da Vila Militar, talvez a pior unidade que eles tinham no RJ afora o próprio DOI-Codi e só na iminência de ser libertado é que me transferiram para o Regimento Escola de Cavalaria, mais civilizado.

Saí quando caiu a terceira preventiva que havia sido impetrada contra mim, nos quatro processos a que respondi em auditorias militares (só uma das auditorias não o fizera). E, nos julgamentos, acabaram considerando que o tempo que eu permanecera preso abrangia as sentenças, inclusive porque se tratava de crime continuado.

Mesmo assim, um dos auditores discordou e voltei a ficar preso durante duas semanas, enquanto rolava a discussão sobre a sentença dele podia ou não ser absorvida pelo tempo que eu ficara sob preventiva. Acabaram me soltando de novo.

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