(continuação deste post)
Vejamos o que Marx nos diz a tal respeito nos Grundrisse:
"... A troca do trabalho vivo por trabalho objetivado, o pôr do trabalho social na forma de oposição entre capital e trabalho assalariado, é o último desenvolvimento da relação de valor e da produção baseada no valor. O seu pressuposto é e continua sendo a massa do tempo do trabalho imediato, o quantum de trabalho empregado como fator decisivo da produção da riqueza.
No entanto, à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva passa a depender menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho empregado do que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder que — em sua poderosa efetividade —, por sua vez, não tem nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que depende, ao contrário, do nível da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação dessa ciência na produção...
... O roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual a riqueza atual se baseia, aparece com fundamento miserável em comparação com esse novo fundamento desenvolvido, criado por meio da própria grande indústria..."
"... As forças produtivas e as relações sociais — ambas aspectos diferentes do desenvolvimento do indivíduo social — aparecem somente como meios do capital, e para ele são exclusivamente meios para poder produzir a partir do seu fundamento acanhado. De fato, porém, elas constituem as condições materiais para fazê-lo voar pelos ares..."
Marx conclui, enfim, que as relações de produção capitalistas, sob tais pressupostos, se tornariam inviabilizadas.
Pois bem. Vivemos uma depressão mundial em ciclos cada vez mais próximos e em números expressivos. De 2008/2009 para 2020, juntam-se duas ondas gigantescas de crise ocorrendo num espaço de apenas 12 anos (que, em termos de história da evolução social, representam cronologicamente pouco).
Mas a crise sanitária tornou evidente a certeza de que não podemos viver socialmente sob a égide do capital, que é uma forma de relação social somente viável (e, assim mesmo, de forma precária e segregacionista) sob determinadas circunstâncias, que agora desaparecem.
Juntou-se o desemprego estrutural causado pela contradição da produção sob o capital, com a paralisia das relações mercantis de produção acentuada pela crise sanitária.
O resultado disso é que não se produz mercadorias porque não se tem quem compre a produção dessas mercadorias.
É um impasse irresolúvel sob os critérios mercantis, e de um modo que nunca antes havia sido experimentado. O inimigo é silencioso; abrangente; disperso pelo alto grau de contaminação; e traiçoeiramente letal, tanto no que se refere à vida humana quanto às relações sociais abstratas e escravistas estabelecidas.
A solução de tal impasse econômico-sanitário (que restringe sobremodo as transações comerciais frenéticas) só poder ser a produção de distribuição de bens de consumo independentemente de seus custos de produção e de capacidade aquisitiva em dinheiro, porque estamos tratando de salvar vidas numa escala mundial. Afinal, num quilo de feijão não há nenhum átomo de dinheiro.
O limite autodestrutivo da forma-valor restará evidenciado no momento em que os padrões monetários deixarem de ter relação com a substância do valor, que é o tempo-trabalho mensurado e remunerado pelo mesmo critério de valor monetário. Quando isto ocorre, está decretada insustentabilidade e o começo do fim da relação social denominada capitalismo.
Uma vez excluída do padrão monetário (que é, ou deve ser, representação do valor) a substância tempo de trabalho em valor, o dinheiro passa a ser mero bilhete/cota para aquisição de mercadorias, que é o que já estamos praticando e que não tem sustentação no longo prazo.
É que tal critério de abastecimento, que visa a manutenção do valor como forma de mediação social, tende a fugir do controle do Estado, demonstrando não apenas a prescindibilidade do Estado como gestor econômico vertical da vida social, como também a ineficácia do valor (dinheiro e mercadorias) como modo de mediação social.
Este é o temor não apenas do segmento político, mas de todo o edifício erigido em torno da riqueza abstrata: o receio de que o conceito jurídico de propriedade ilimitada da riqueza abstrata (que, sob tal pressuposto, perderá a sua função de conversibilidade em valor e funcionalidade social), venha a evidenciar-se como causador de penúria absoluta.
Ainda que a crise sanitária seja debelada (coisa que desejamos, como forma de evitar-se o genocídio) em tempo hábil para a retomada da precária normalidade da mediação social pela forma-mercadoria, a fragilidade de tal modo de relação social restará comprovada.
Estamos vivendo o começo do fim daquela relação social que, vaticinou Marx, um dia iria voar pelos ares graças às contradições dos seus fundamentos, erroneamente tidos por muitos como ontológicos e não apenas históricos.
Precisaremos sobreviver ao pesadelo do coronavírus para, adiante, vermos a concretização do sonho emancipatório da humanidade realizado, com a abolição da escravatura milenar, mesmo que depois surjam problemas existenciais próprios à condição humana. (por Dalton Rosado)
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