terça-feira, 31 de março de 2020

NUNCA MAIS SEREMOS OS MESMOS

dalton rosado
OUTRAS LIÇÕES DO CORONAVÍRUS
"Só vamos sair dessa por meio da cooperação e do
trabalho em conjunto" (Nancy Bellei, infectologista)
No meu último artigo, o Celso Lungaretti, com sua sensibilidade de jornalista e alma revolucionária, pinçou, no meio do texto, a frase "a atual conjunção de crise econômica e sanitária deixará sequelas profundas na consciência dos povos" para fazer dela o título do post. 

A palavra sequela, normalmente, é utilizada para designar danos remanescentes de um acontecimento traumático. Mas, isto não significa só caiba quando os resquícios são maléficos; pode se referir, também, a reflexões que levem a uma correção de rumos comportamentais e conceituais cujo saldo seja benéfico. 

Feita esta ressalva, elenquemos outras lições a serem extraídas da pandemia que paralisou a produção de mercadorias e a comercialização das ditas cujas mundo afora, criando um impasse de natureza econômico-mercantil que, somado à própria crise sanitária, gerou este caos social pelo qual estamos passando. 

Mas, como não há mal que não traga um bem (sabedoria popular), a crise econômico-sanitária pode também acarretar uma benéfica correção de rumos comportamentais e conceituais. Eis três exemplos:
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Redução da frenética busca de movimento – hoje vivemos num ritmo frenético, de movimentos inerentes à realização de tarefas que nos tragam remuneração em dinheiro capaz de suprir as nossas necessidades de consumo, cada vez maiores. 

Afinal, tempo é dinheiro, diz uma frase cunhada na terra do Tio Sam

O trânsito caótico nos faz (contraditoriamente à pretendida velocidade de movimentos) gastarmos na ida e volta do trabalho quase a mesma quantidade de horas que no próprio trabalho, principalmente no caso de quem teve de aceitar empregos a grande distância de onde reside.

O desgaste decorrente de tais travessias diminui a produtividade na produção de mercadorias, que nada mais é do que a luta contra o tempo imposta pela guerra concorrencial de mercado, na qual sai vitorioso quem produz mais em menos tempo, fenômeno tão bem retratado no clássico de 1936 de Charlie Chaplin, Tempos Modernos.

Contraditoriamente, buscamos velocidade e encontramos paralisia. Para piorar, esse sôfrego processo de busca da velocidade de locomoção a partir da combustão fóssil é comprovadamente nocivo à ecologia, de vez que provoca a emissão na atmosfera do gás carbônico que maltrata os nossos pulmões, além de provocar o aquecimento global pelo efeito-estufa (não terá tal aquecimento feito ressurgirem organismos bacteriológicos adormecidos?).  

De repente, com as ruas sem trânsito, o ar melhorou e a corrida contra o tempo teve de dar um tempo. 

Estamos agora nos perguntando se precisamos mesmo viver num ritmo tão doentiamente veloz, no qual tudo tem de ser a jato (inclusive o combate à corrupção denominado de lava-jato, como se ele sozinho fosse capaz de extirpar a jato muitos dos males sociais sob os quais vivemos).

O presidente Boçalnaro, o ignaro quer que voltemos rapidamente à produção e circulação de mercadorias, pois a paralisia trava a máquina econômica do tempo do capital e, consequentemente, toda a máquina burocrática estatal, que somente funciona quando lubrificada com dinheiro extraído dos trabalhadores via impostos que lhes são cobrados na fonte. 

A crise econômico-sanitária nos impele à reflexão sobre a possibilidade de uma vida menos acelerada, na qual o ócio possa ser produtivo, e tenhamos tempo para a vida na sua expressão verdadeira, qual seja, o afeto, o exercício de nossos pendores artísticos, esportivos, literários, etc.

[E até religiosos (preferivelmente sem dízimo, que é dinheiro, causa dos nossos males) para os que buscam no exercício da fé a transcendência dos problemas existenciais e do significado da vida.] 
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Uma vida menos consumista, mais comunitária e solidária – a crise expôs a nossa vulnerabilidade social, acentuando deficiências que sabíamos existir. E o fez do modo mais cruel em várias áreas da vida social, como as: 
— da saúde;
— da habitação;
— da falta d’água, num momento em que a higiene é questão de vida ou morte;
— da precariedade da informalidade do bico (forma de precária sobrevivência);
— do drama do desemprego daqueles que, aptos para o trabalho, estão desempregados e não conseguem obter os recursos mínimos para sua sobrevivência; 
— da certeza de que os estoques de bens de consumo podem ser repostos nos supermercados após a corrida às prateleiras provocada pelo alarmismo inicial, mas que falta acesso a esses mesmos bens, etc.

Em suma, a exuberância da sociedade de consumo é falsa, porque priva a maior parte dos seus destinatários de meios para adquirir os bens e recursos por ela oferecidos.

Mas, se agora constatamos com mais clareza nossas deficiências sociais, isto nos estimula a sermos solidários e aguça a nossa consciência sobre o que devemos fazer.

Não são poucas as manifestações do povo brasileiro de que é capaz de se juntar comunitariamente em formas alternativas de suprimento das carências sociais a partir de si próprio, sem esperar que o Estado (opressor por natureza!) venha resolver os seus problemas, pois não o fará. 

Ainda mais quando o Estado é representado por um governo insensível e irresponsável, que contraria a ciência para priorizar os interesses econômicos dominantes, exacerbando sua indiferença pela sina dos pobres, idosos e vulneráveis em geral.  

Estamos descobrindo que podemos viver com pouco, em termos de consumo; mas com muito, em termos de fraternidade. 

Aflora o sentido comunitário em circunstancias e ocasiões como:
— quando jovens passam a cuidar de velhos dos quais, antes, mal se apercebiam; 
— quando mais pessoas se dispõem a prestar serviços médicos, formando um contingente de heróis comunitários;
— quando nos cai a ficha de que um sabonete, para quem não tem sequer um banheiro, desperta a consciência de que somos merecedores de bem mais do que um banheiro e de itens de limpeza pessoal, fazendo-nos notar quão antissocial é o nosso modo de socialização;
— quando percebemos que um pão e um ovo com uma xícara de café quente numa madrugada fria de fome, vale mais do que qualquer expressão numérica de valor abstrato que possa a eles ser atribuído;
— quando tomamos consciência de que, mais do que espectadores da vida vivida por outros a quem invejamos (caso dos que afrontam a nossa carência com seu fausto consumista), devemos ser protagonistas prazerosos da nossa própria vida, e de que isto representa interação com o sofrimento e a alegria do outro que, na pressa da busca pelo vil metal deixamos de notar. 
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Quem é mesmo socialmente importante – as ruas ficaram vazias, mas nelas estão os garis arriscando as suas vidas em contato com os dejetos que descartamos nos lixos urbanos (inclusive máscaras e objetos médicos infectados).

As ruas estão vazias (apesar do Boçalnaro), mas os cientistas, em seus laboratórios, levam avante sua busca frenética por uma vacina que afaste de nós o pesadelo da morte em massa, atingidos por um organismo microscópico mas muito longe de ser inofensivo como dá a entender quem a ele se refere com diminutivos oportunistas.

As ruas estão vazias, inclusive dos que se julgam superiores por terem amealhado fortuna com a apropriação da riqueza produzida por muitos que hoje se encontram na penúria do desemprego estrutural sem saber bem o porquê de estarem sendo prescindidos naquilo que sempre fizeram: produzir valor e mais-valia para outrem.
As ruas estão vazias, mas nas favelas com grande densidade habitacional e riscos imensos, jovens voluntários inventam brincadeiras para distrair as crianças, evitando que saiam a essas mesmas ruas sem a percepção do perigo que ronda a elas, a seus pais e, principalmente, a seus avós. 

As ruas estão vazias, mas, nos hospitais, equipes de guerreiros lutam desesperadamente contra a falta de equipamentos médicos, tentando salvar vidas alheias e arriscando as delas mesmas no processo (só na Itália já morreram mais de 50 médicos que combatiam a doença virótica, e agora também um famoso médico estadunidense). 

As ruas estão vazias, mas os homens do campo ordenham a vaca que produz o leite indispensável, ou planta o cereal que fará o milagre da fecundação múltipla que servirá de alimento de todos os citadinos.

Enfim, não são os que estão no topo da pirâmide social, controlando o poder político ou as complexas e tenebrosas manipulações financeiras, que nesta hora têm maior importância. Aliás, eles sempre têm uma importância menor do que querem nos fazer crer. 

A pandemia, que se configura como uma tragédia humana mundial, fez-nos lançar um olhar diferente, mais sofrido e por isto mesmo mais verdadeiro, sobre nossos valores, conceitos e comportamentos. Vem daí que, realmente, a atual conjunção de crise econômica e sanitária deixará sequelas profundas na consciência dos povos

Nunca mais seremos os mesmos. (por Dalton Rosado)
A cantora Alai Diniz, que ficou retida em
Barcelona, alegra os vizinhos com sua arte.

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