sexta-feira, 27 de março de 2020

A ATUAL CONJUNÇÃO DE CRISE ECONÔMICA E SANITÁRIA DEIXARÁ SEQUELAS PROFUNDAS NA CONSCIÊNCIA DOS POVOS

dalton rosado
O DINHEIRO SEM LASTRO COMO MERA COTA DE SOBREVIVÊNCIA MISERÁVEL DAS PESSOAS E DO CAPITAL 
Durante a 2ª Guerra Mundial, a moeda dos países que tiveram a sua economia paralisada pelo conflito bélico entrou em colapso e os bens necessários ao consumo, cada vez mais escassos passaram a ter importância vital, ainda que não possuíssem valor econômico diante do padrão monetário (o dinheiro) daquele país. 

Há estatísticas que registram morte de pessoas em números consideráveis pela debilitação orgânica, por doenças decorrentes da fome ou pela redução das imunidades biológicas causada pela subnutrição; existem depoimentos dramáticos de pessoas que sobreviveram com pequenas rações diárias de um mesmo alimento por meses e meses.

A riqueza abstrata, representada pelo interesse hegemônico de acumulação do capital, foi o móvel da guerra; tendo provocado o colapso econômico em várias localidades. 

Ficou também demonstrada a importância social da riqueza material, que subsiste às manipulações artificiais e segregacionistas da mediação social pelo capital. 

Evidenciou-se que o dinheiro não é um instrumento neutro como um guarda-chuva durante a tempestade; é a representação numérica de uma relação social opressora e segregacionista. 

Vivemos hoje uma situação parecida, ainda que não se possa compará-la a uma guerra convencional, justamente por não tratar-se de intenção de domínio econômico e territorial dos países em conflito entre si, mas da necessidade de combate de todos contra um organismo microscópico, mas poderosamente transmissível e letal em número absolutos.

A paralisia da produção do valor (dinheiro e mercadorias) pelo coronavírus, ao qual não se pode atribuir nenhum conteúdo ideológico, está a potencializar em intensidade uma situação que antes já era explosiva pelos próprios fundamentos funcionais contraditórios da dinâmica das mutações sociais da produção de mercadorias. 

É em tal quadro de uma crise econômico-sanitária antes inimaginável que o mundo procura soluções viáveis tanto para o suprimento de necessidades de consumo e como para a salvação de vidas em face da pandemia. 

O mundo capitalista quer resolver, sob critérios da lógica do valor, a contradição que consiste na necessidade de manutenção das relações de produção industrial, de comércio e de serviços sob os critérios da mercadoria, e o imperativo da reclusão em casa dos produtores e consumidores dessas mesmas mercadorias para evitar a propagação do coronavírus.  

O que já era ruim ficou pior por causa desse fator inesperado: a pandemia. 

Há muito que sabemos que as relações capitalistas mundiais rodam sob uma base falsa, qual seja a emissão de moedas (dólar e euro) internacionalmente aceitas pela periferia capitalista, de modo ilusório, como fortes; e o aumento da dívida pública e privada por créditos bancários ou emissão de títulos da dívida pública. 
Tal procedimento não é facultado aos países periféricos a partir de suas próprias moedas, sob pena de explosão inflacionária que as levaria a uma deterioração insuportável para a sua população (principalmente para os assalariados e desempregados). 

O Brasil, p. ex., necessita distribuir dinheiro sem lastro e aumentar o déficit público como medida desesperada, daí ter de correr o risco de retomar o processo inflacionário de recente e desastrosa memória; ademais, a nossa dívida pública e os juros sobre ela incidentes vão aumentar nosso infortúnio.

É evidente que a artificialidade de tais mecanismos financeiros, que ocorre pela falta de correspondência de volume de valor produzido pela chamada economia real (a produção de mercadorias) e pela premente necessidade de suprimento da irrigação monetária da economia mundial, refém da forma-valor, tende a provocar, num momento futuro, o estrangulamento da economia mundial, causado:
— pela impossibilidade de a periferia capitalista sobreviver sob tais critérios;
 pelo colapso do sistema de crédito; e 
 pela acentuada depressão econômica nos chamados países ricos.

Aliás, somente quando o fogo aceso na maior parte do hemisfério Sul começar a arder na maior parte do hemisfério Norte é que a cobra vai fumar.

A crise epidêmica expõe, de modo nunca antes imaginado, o artificialismo das relações sociais e econômicas; e a distribuição de dinheiro sem lastro como remédio econômico representa, no longo prazo, a tentativa de combate à da doença com remédios causadores da própria doença. 

Na atualidade o dinheiro é a causa do mal em si, causador da costumeira doença sócio-econômica; e sua distribuição pela forma atual (sem que se lance mão da distribuição simples e direta de objetos servíveis ao consumo, excluída a mensuração de valor, passo inicial para a implantação de um modo alternativo de produção socia), terá fôlego curto se a crise sanitária durar muito. 

Esse tipo de solução, qual seja a distribuição de dinheiro sem lastro, somente é factível de modo substancial aos países de moeda forte, e assim mesmo por determinado e breve período; o Brasil não se enquadra nesses parâmetros e o déficit das contas públicas vai explodir de modo comprometedor para a salvação, num futuro imediato, da vida dos brasileiros.

O que serve para os Estados Unidos, não serve e nem pode ser feito pelo Brasil.

Para se ter uma ideia do que estamos falando, basta se comparar os números do combate financeiro da crise econômica e virótica nos EUA (que estavam despreparados para tal emergência e, por isso, já figuram como epicentro da crise sanitária mundial) com os do Brasil.

Para uma população de 327 milhões de habitantes; o parlamento estadunidense aprovou uma verba de US$ 2 trilhões para a sustentação da economia e gastos com a pandemia; já o Brasil, com 215 milhões de habitantes (65% da população dos Estados Unidos), pretende liberar US$ 150 bilhões (7,5% da verba dos EUA), havendo, contudo, dúvidas sobre se conseguirá cumprir o que anunciou.

A defasagem de valores disponibilizados para a solução de um mesmo problema (econômico e sanitário) é abismal em termos absolutos, ainda que volume represente 10% do PIB de cada país em termos relativos. Esta diferença de tratamento nos autoriza a falar numa tragédia anunciada.

Nós sofreremos o impacto do déficit público de maneira brutal, porque pagamos juros altos e temos dificuldades para a obtenção de crédito, não podendo emitir moeda sem que isso cause inflação (um flagelo econômico que atinge em cheio as populações de baixa renda assalariada ou renda nenhuma).

Os EUA podem empurrar com a barriga o seu déficit público e assim garantir a sustentação do seu PIB que anda em torno de US$ 20 trilhões, causando inveja ao resto do mundo pobre que o sustenta.  

Em recente reunião virtual do G20 na qual o Brasil esteve representado (caberá este termo no caso dele?) pelo presidente Boçalnaro, o ignaro, mais queimado internacionalmente do que carvão em churrasqueira, ficou definida uma ajuda de US$ 5 trilhões para o combate mundial à pandemia, sem que se saiba até agora como o presidente se posicionou —o vídeo de sua participação de três minutos não foi divulgado. 

Tal medida visa manter a salvo a economia mundial que já vinha em depressão e hoje está ameaçada de morte pela pandemia. Mas, observe-se que a ajuda é calculada em dólar dos Estados Unidos, moeda internacional que, apesar de não ter substância, é o objeto de desejo de todos como se fosse um ativo confiável. 

Assim segue o baile segundo os critérios absolutistas da economia de mercado mundial. É assim que eles querem resolver o problema, mais preocupados em salvar os seus negócios do que a vida das pessoas que os sustentam.

Eles temem a barbárie que um colapso no abastecimento poderia causar, com saques e agressões físicas indesejados por todos nós, e é por isso que aumentam a dose de artificialismo distribuindo dinheiro (R$ 600 aqui, onde representam US$ 150 versus US$ 1.200 nos EUA) como mero cartão de cota de subsistência alimentar aos desvalidos da sorte.

Nós poderíamos perfeitamente produzir e distribuir objetos necessários à satisfação do consumo sem a interveniência do dinheiro e, assim, iniciarmos o processo de emancipação humana, após séculos de escravidão e misticismo.   

De qualquer forma, a atual conjunção de crise econômica e sanitária deixará sequelas profundas nas consciências dos povos mundo afora, e a maior lição que se pode dela extrair será que a vida não poderá mais se submeter aos critérios mesquinhos e limitados da lógica da riqueza abstrata.

Tendo a pandemia acelerado o processo de depressão econômica mundial, a economia dos países dominantes será profundamente atingida pela verdade que terminará por bater em suas portas denunciando a crueldade do sistema capitalista; em seu processo de limite interno de expansão e sustentabilidade, ele é mais letal e cruel do que o vírus que, concomitantemente às vidas que fere de morte, corrói as suas entranhas.  

Os povos deverão, p. ex., aprender a se direcionar para uma forma de relação social baseada na produção social fora dos critérios de viabilidade econômica da produção e de modo a que a vida se sobreponha aos critérios do lucro.

Deverão aprender que toda produção de bens necessários ao sustento deve ser efetivada, viabilizando-se tudo que seja possível de ser feito, como a inimaginável (sob os critérios de custo/benefício) transposição de água do rio Amazonas para o nordeste do Brasil; ou a manutenção da vida nas terras áridas de uma fazenda de camponeses localizada no mais distante rincão do Planeta, tornando factível uma economia de subsistência social a partir apenas dos padrões de necessidade de consumo e auxiliada pelo saber acumulado pela ciência agronômica. 

Devemos lutar pela implantação de uma vida em que o bem de cada um seja o bem de todos, e não o contrário, como ocorre na vida social mediada pela dinheiro, com a consequente acumulação excludente e genocida. (por Dalton Rosado)

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