Na semana passada, assisti com atenção à entrevista do ministro Paulo Guedes na GloboNews. As reflexões por ela inspiradas me levaram a escrever o presente artigo.
No governo idiossincrásico, contraditório e hipócrita do capitão Boçalnaro, o ignaro, a pasta da Economia é a única que tem um norte referencial definido, como se fosse um governo autônomo (aliás o próprio presidente, que se declara desconhecedor da matéria, afirma que Guedes é seu patrão na dita cuja).
Nos balanços das atividades governamentais de final de ano, vem sendo ressaltada a melhora no segundo semestre, relativamente aos terríveis indicadores econômicos do semestre anterior. Isto me faz lembrar aquela velha história do bode na sala; retirado o bicho fedorento, as pessoas sentem tal alívio que relavam suas outras queixas.
A pequena recuperação do enfermo (no que tange às finanças públicas e à economia brasileira) dá ensejo a que os mercadores de ilusões voltem a aplicar, às vésperas da virada de ano, o conto da prosperidade que está chegando, a partir dos seguintes fatos e/ou prognósticos:
— tangida pela redução dos juros estratosféricos que, no Brasil, fazem a alegria do capital especulativo dos rentistas (o povo não pode ter aplicações financeiras por motivos óbvios), o capital migra para os investimentos em ações da bolsa de valores e, com novos investidores, elevam-se os ganhos especulativos;
— fazem-se projeções de crescimento do PIB (tendentes a ser desmentidas pela realidade, como sempre) acima dos 2%;
— prevê-se que o déficit fiscal tanto em 2019 quanto em 2020 será inferior a R$ 100 bilhões, como se menos pior equivalesse a bom, entre outras expectativas otimistas;
Após o vexame que deu quando rodou a baiana na Câmara... |
O governo magnifica os tímidos sinais positivos provenientes da área econômica e desviar a atenção geral das tantas notícias de atuação desastrosa do governo nos vários segmentos da administração pública, aí incluídas as denúncias cada vez mais convincentes da ligação do clã Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro (suspeita-se até que o hoje senador zero à esquerda Flávio Bolsonaro teria antes chefiado o chamado Escritório do Crime).
A popularidade da trupe cai vertiginosamente, igualando-se e até superando aos piores indicadores para um primeiro ano de outros governos fracassados que já tivemos, daí as tentativas de recuperar prestígio com as falaciosas previsões otimistas para o futuro.
O capitalismo tem uma lógica cartesiana e tais prognósticos costumeiramente enganam os analistas que somente raciocinam a partir de suas acanhadas possibilidades e estão ansiosos para que o wishful thinking se torne realidade.
Os jornalistas, quando entrevistaram Guedes, terminaram sendo prejudicados por essa lógica cartesiana que não admite um pensar fora da caixa; ou seja, encaixotados que estão pelo que chamo de lógica ilógica de uma relação social segregacionista que todos (direita e esquerda, cada um ao seu modo) querem ver dar certo.
...Guedes estava bem mais calminho na GloboNews... |
Quando Guedes afirma que foi um ganho histórico a reforma da Previdência Social cujo déficit orçamentário iria impossibilitar o pagamento dos pensionistas num futuro próximo, ele faz uma afirmação correta, mas somente quando raciocinamos dentro da lógica acanhada e reducionista da dinâmica e interesses do capital.
Caso raciocinemos fora da lógica do capital, entendendo a Previdência como relação atuarial e contábil em processo de saturação constante, ela simplesmente deixará de existir, sendo substituída por uma assistência social que corresponderá à ação contributiva de todos os indivíduos sociais em benefício de todos, sem a mediação social pela forma-valor (dinheiro e mercadorias).
Sob tal critério não haverá déficit nem superávit financeiro previdenciário, exatamente porque não vai existir riqueza abstrata a ser medida sob o critério numérico de um padrão monetário qualquer. Tal possibilidade jamais é analisada pela grande mídia, como se estivéssemos irremediavelmente presos a uma única forma social de ser.
Do ponto de vista da emancipação popular a realidade da Previdência Social e sua reforma inevitável explicita e desnuda uma realidade que corresponde:
— à certidão passada em cartório da falência de um sistema que teoricamente visaria proteger os trabalhadores na sua velhice;
— uma perda histórica, à medida que exige dos trabalhadores que continuem contribuindo para a Previdência acima do limite de suas forças;
— uma perda de rendimentos, no momento exato em que os trabalhadores mais precisam efetuar gastos com remédios e atendimentos hospitalares num país que, tentando equilibrar as finanças públicas a qualquer custo, retira verbas da saúde;
...mas sua característica básica continuou sendo a mesma... |
Mas, diante da falaciosa afirmação governamental do Guedes, todos aplaudem ou ficam calados, justamente porque somente conseguem racionar dentro da lógica cartesiana do capital segundo a qual vão-se os anéis para que fiquem os dedos (o capital acumulado, os seus mecanismos de reprodução e seu Estado).
No Brasil (diferentemente do que ocorre na França), a grande mídia conseguiu convencer a população de que a reforma da Previdência, uma redução de direitos, é um ganho de direitos futuros, deixando que os deputados federais e senadores pudessem comodamente sucumbir às ordens do capital em rota falimentar e aprovar tal medida flagrantemente impopular sem temerem prejuízos eleitorais futuros.
De outra, parte, na referida entrevista Guedes, esboçou a tentativa de criação de um novo imposto sobre movimentação financeira, justificada como necessária para o equilíbrio das contas públicas.
Tal proposição foi, também, apenas levemente rechaçada pelos jornalistas, que deveriam ter argumentado que o povo brasileiro já exaurido economicamente pelo desemprego estrutural e baixos salários, não pode pagar pelo custo desse novo tributo que seria transferido para os preços das mercadorias a serem compradas por esses mesmos trabalhadores.
Coube aos deputados e senadores, de olho nas eleições municipais do próximo ano, rechaçar a ideia absurda.
...idem, a dificuldade em aceitar um não! |
As proposições liberais ortodoxas de Guedes somente parecem lógicas quando raciocinamos dentro da ilogia capitalista, mas o futuro demonstrará quão velhas e obsoletas elas são (aliás, experimentadas até pelos nossos vizinho argentinos e chilenos, produziram o resultado que conhecemos). E o preço a ser pago pelo povo brasileiro vai ser dos mais elevados.
Tudo que aí está é antigo e mofado. As proposições econômicas governamentais correspondem ao encadeamento de medidas que visam salvar o capital e o Estado às custas do sacrifício popular, de vez que o objeto teleológico do dito cujo não é a satisfação das necessidades da população, mas sim o tautológico e vazio fim em si mesmo de sua reprodução cumulativa ad infinitum sem o qual ele sucumbe e morre.
Aliás, nada mais vetusto do que as brigas do presidente Boçalnaro, o ignaro, com o partido que o elegeu (o PSL, melhor definido como Partido do Laranjal), pela direção do mesmo e pelas verbas eleitorais milionárias pagas pelo povo brasileiro.
Nada mais ultrapassado, também, do que as denúncias das tradicionais rachadinhas (entrega de parte dos salários de assessores parlamentares, bancados pelo erário, para aquele que os empregou), praticadas pelos seus filhos zero à esquerda.
Diante de tudo isso, como é que fica mesmo o discurso da nova política do presidente, na qual tantos eleitores incautos acreditaram?
Entendo que um jornalismo revolucionário, capaz de fazer proposições emancipatórias, é impossível de existir e ser levado a cabo a partir de um exercício profissional de empresas midiáticas cujo objeto final é o lucro.
No mais, feliz Natal para quem ainda possa ser feliz neste Natal! |
Os critérios de uma empresa produtora de alimentos que apenas usa a necessidade de consumo alimentar para realizar seus lucros produzindo mercadorias e vendendo-as, e as deixa de produzir se algum obstáculo impede a realização de tais lucros, são os mesmíssimos das empresas midiáticas.
O produto notícia e suas correspondente análises, a ser vendido pela empresa midiática, jamais poderá contrariar o objetivo teleológico empresarial, o lucro, somente possível de existir dentro da lógica cartesiana do capital. Como se querer, então, que as empresas jornalísticas possam sugerir a superação do dinheiro e do lucro, intenção última de sua atividade?
Os profissionais do jornalismo, tais quais os trabalhadores de uma indústria, produzem valor numa quantidade superior aos seus salários (submetidos que são à extração de mais-valia); e, assim como os operários fabris, e ainda que a contragosto, são obrigados em seu ofício a positivar aquilo que os escraviza.
É falaciosa a tese da independência jornalística de conteúdo, embora tenhamos de considerar que ruim com ela, pior sem ela, como querem as ditaduras de todos os matizes. Então, o que defendemos não é uma imprensa amordaçada pelo capital ou pela força ditatorial, mas sim uma imprensa livre das peias do capital e/ou da força, convergente, portanto, com o verdadeiro interesse popular.
Quero terminar este artigo de Natal, fazendo um elogio àqueles profissionais de imprensa que, hábeis no manejo das ferramentas do ofício, conseguem driblar a lógica empresarial jornalística, enxertando uma mensagem subliminar de contrariedade à opressão intrínseca e à desinformação midiática tradicional, propiciando, assim, a reflexão libertadora.
Parabéns ao Celso que, sendo jornalista, consegue sobreviver destoando do coro dos contentes e nos proporcionar um veículo como o Náufrago da Utopia, que continuará sendo libertário por mais que muitos o queiram calar, incomodados com seu conteúdo emancipacionista.
Feliz Natal para todos!
(Dalton Rosado)
2 comentários:
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Dalton,
Também encerro este ano grato por existir O Naufrago da Utopia que me açulou a estudar, mesmo que diletantemente, filosofia.
A sua argumentação e as palavras difíceis que você usa me levaram a buscar conhecer seu significado e as significações que elas apontam, posto que o discurso só é verdadeiro se correspode a realidade.
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Eu, de meu eu sertanejo, sempre relevo o discurso laudatório e, mais ainda, a predição, mesmo que risonha, principalmente de pessoas cuja seriedade ignoramos, a saber: a grande imprensa.
A tal imprensa especializada em economia, patrocinada pelo poder econômico, não merece a menor credibilidade e nem seus aulicos. Basta ver a previsão do PIB-2019 feita em dez/18 e o PIB que agora se confirma.
Outra coisa é a inflação que, dizem, será baixa, mas que está crescendo, contaminada pela especulação com o dólar em um cenário sem nenhum risco de crise cambial.
Vide IGPM/19 em mais de 7% e o IPCA aumentando
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A sua análise da mediação social e a maneira como você expõe a forma ontológica com que Marx a descreve, foi, para mim, uma novidade.
Estava acostumado aos conceitos dialéticos da luta de classes e compreendia um pouco a alienação a qual é submetida a classe operária em todos os aspectos da sua existência e não apenas na mais valia.
O seu desenvolvimento das múltiplas facetas da alienação me fizeram ver que, na relação dialética opressor e oprimido, ela esta presente em ambos, obedientes que são a lógica do capital e sua teleologia amesquinhadora da possibilidade humana.
Ao compreender esse ponto percebi que essa forma de existir inviabiliza o progresso da humanidade.
Ainda é cedo, porém, para dizer que entendi o quanto esta relação social é o resultado da decadência do ser humano em assumir a totalidade das possibilidades que lhe são inerentes.
O quanto isso decorre do medo de aceitar a própria mortalidade, sua impermanência e sua absoluta nulidade diante do existente.
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Por fim, parece que toda a analítica de Marx trata de entes e é, em sua essência, ôntica.
E, mesmo que uma sociedade sem classes existisse agora, ainda assim, teríamos que nos defrontar com a questão do sentido do ser.
Mesmo, no caso da utopia socialista, bem alimentados e livres, na concretude de uma existência plena de gozo, será que teríamos forças para fugir do hedonismo e enfrentarmos a áspera constatação de sermos um intervalo consciente entre dois nadas? Ou a nossa mortalidade? Ou melhor, a consciência da nossa finitude?
Gratidão, pois, por provocar estas indagações.
E boas festas!
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Caro leitor Sadi Fernandes,
todos nós do blog ficamos comovidos com sua assiduidade de leitura dos nossos textos, e mais do que isso, a sua abertura para o entendimento e aceitação de conceitos sociais que fogem da mesmice desde que o capitalismo se estabeleceu como forma de relação social dominante e desenvolvida. O pensamento marxiano esotérico da maturidade do grande filósofo é o que mais serve de base para fugirmos da camisa de força que tem como base a forma-mercadoria.
Agora, que esse mesmo capitalismo atingiu o seu limite interno de expansão, evidenciando a sua falibilidade enquanto modo eficaz de mediação social, inclusive na questão tão evidente da crise ecológica por ele proporcionada e sem solução sob seus balizamentos lógico-existenciais, entendemos que as proposições de um pensar fora da caixa, que demonstre claramente a possibilidade de vivermos sob a égide de um novo parâmetro de relações sociais que em tudo e por tudo coloca às claras a insustentabilidade da lógica segregacionista da forma-valor, é muito bom sabermos que pessoas com seu nível de entendimento e busca de um norte referencial emancipatório possa convergir (e discordar, eventualmente, o que é sempre muito saudável) com as nossas ideias e promover o debate aberto e sem preconceitos.
Um bom natal e grato por tudo.
Dalton Rosado.
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