quinta-feira, 19 de setembro de 2019

UM CADÁVER DOMINA A SOCIEDADE – O CADÁVER DO TRABALHO (parte 1)

dalton rosado
CAPITAL E TRABALHOESPÉCIES DO GÊNERO VALOR
"Um cadáver domina a sociedade – o cadáver do trabalho.
 Todos os poderes ao redor do globo uniram-se para a defesa
deste domínio: o papa e o Banco Mundial, Tony Blair e 
Jörg Haider, sindicatos empresários, ecologistas alemães
e socialistas franceses. Todos eles só conhecem um lema: 
 trabalho, trabalho, trabalho"(abertura do Manifesto
Contra o Trabalho, do Grupo Krisis)
O valor econômico é uma abstração numérica criada pela mente humana para a quantificação e qualificação de objetos e serviços servíveis ao consumo social, destinados à troca entre seus produtores e detentores e, assim, transformados em mercadorias.

Dito assim, parece algo natural e ontológico nas relações humanas, e até facilitador de tais relações. Mas, não é isto; ou não é apenas isto.  

É que o valor embute algo antinatural: a necessidade implícita de apropriação numericamente abstrata, autotélica e cumulativa, do esforço coletivo de produção de bens de consumo e serviços, os quais são transformados em mercadorias, em detrimento do interesse coletivo.

Sob o critério do valor, a produção social tem de ser, implicita e inevitavelmente, negativa em termos sociais.

O valor foi, originalmente, o vírus estimulador da escravização direta; transformou-se ao longo dos tempos e com os aperfeiçoamentos imanentes à sua própria forma, no instrumento da escravização indireta moderna.
"escravização indireta moderna"

Não foi o valor que instituiu a troca quantificada, o escambo (que é diferente da doação de excedentes de produção), mas foi a troca quantificada que instituiu o valor; isto ocorreu no exato momento em que se deixou de praticar a partilha comunitária dos bens produzidos coletivamente e se passou a admitir a propriedade privada dos ditos cujos. 

O critério de mensuração numérica do valor dos bens produzidos e destinados à troca (assim nasceu o mercado, altar de tais transações) foi o grau de esforço humano de produção, ou seja, o tempo médio dedicado à produção de cada produto destinado à troca. 

Assim, cada objeto passou a ser mensurado em valor na troca pelo quantitativo de tempo de esforço humano de sua produção. 

Tais bens se transformaram assim em mercadorias, com dupla personalidade: o valor de uso e o valor de troca. Estava então decretado o individualismo em contraposto ao coletivismo; a transformação das virtudes individuais em poder individual; e o sentimento da mesquinhez em lugar da solidariedade.
Episódio emblemático/traumático: a desocupação do Pinheirinho
Da mesma forma, o tempo e a maior capacidade de esforço humano na produção também passou a ser mensurado em valor, e denominado como mercadoria força de trabalho, que é ao mesmo tempo concreta (pois produz objetos palpáveis e consumíveis) e abstrata (pois produz um quantitativo numérico de valor).

Mercadoria é, pois, do ponto de vista econômico (valor), um quantitativo acumulado de outra mercadoria, a força de trabalho. Todas as mercadorias, sob o valor, representam um quantitativo acumulado das mercadorias forças de trabalho nelas coagulada.

A esse esforço humano de produção, ou mercadoria força de trabalho, passou-se a denominar trabalho abstrato, por sua dupla personalidade, concreta e abstrata. 

O valor, como dissemos, é uma abstração numérica que quantifica e se incorpora às mercadorias em razão da necessidade de mensuração destas nas trocas quantificadas. 

Assim, o valor, enquanto abstração, precisa da produção contínua e aumentada de mercadorias destinadas à troca no mercado para existir. 
A canção Cio da Terra é uma emocionante celebração do valor de uso

Cessada ou reduzida a produção de mercadorias, cessa ou diminui a existência do valor, causa motora da atual debacle da mediação social mercantil. Como a produção mecanizada, hoje em dia, dispensa em maior parte a mercadoria força de trabalho e reduz o valor das mercadorias, é o próprio valor, enquanto forma de relação social, que entra em crise. 

É a redução drástica da capacidade de produção de valor pela obsolescência do trabalho abstrato a razão da implosão do capitalismo, modo segregacionista de relação social, e isto ocorre por seus próprios fundamentos, agora tornados acanhados e obsoletos. 

O capital, por sua vez, é valor acumulado, ou seja, constitui-se num grande quantitativo de tempo de trabalho abstrato coagulado nas mercadorias sensíveis e na mercadoria dinheiro, signo e expressão numérica do valor, roubado em parte de quem o produziu com seu esforço (força de trabalho dos trabalhadores) e apropriado pelo seu detentor privado ou estatal. 

Por Dalton Rosado
O capital é um amontoado de roubos de força de trabalho (valor) praticados contra cada trabalhador individualmente. E, como tem uma dinâmica própria autotélica de necessária reprodução cumulativa, jamais pode ser distribuído na sua integralidade, tal como um dragão do mal que, quanto mais cresce mais precisa comer (leia-se roubar) para sobreviver. 
(continua neste post)

2 comentários:

Anônimo disse...

+++
Parabenizo o autor pelo grau de clareza com que expõe um assunto complexo.
Quanto mais eu leio os textos do Dalton, mais aprendo sobre a queda do capitalismo e do capital.
Não funciona e nem tem como funcionar...
Essa base teórica, mesmo que aponte uma utopia, permite entender as trincas que aparecem na estrutura do mundo.

A intervenção do FED provendo liquidez interbancária é evento gravíssimo e escamoteado ou ignorado por grande parte da população.

https://braziljournal.com/em-intervencao-rara-fed-de-ny-injeta-liquidez-no-mercado

Essa trinca, aliada a outras mais da forma do capital apontadas por Dalton, me fazem vislumbrar o estouro da bolha de preços artificialmente inflados da economia mundial e que transformará em pó as garantias igualmente fajutas das instituições financeiras.
Em estado terminal o capital tenta manobras desesperadas para manter-se vivo, quando já está bem morto e, insepulto ainda, empesteia o ar com seu odor nauseabundo.

A utopia de Dalton, contudo, é apenas o outro lado da medalha. Outra fuga.
E não resultará.
Afinal, nem tudo é exatamente como a gente quer...

Entendo, no entanto, que os movimentos de uma nova economia já estão visíveis procurando um novo "engana trouxa", para fazer os mesquinhos e violentos habitantes da terra trabalharem em sociedade (coletivamente) mesmo achando que trabalham para si.
É o que dinheiro faz, de maneira tosca. Pega o individualismo (egoísmo) e o faz trabalhar coletivamente. Em troca lhe dá brinquedos, ilusões de grandeza e possibilidade de expressão ao narcisismo que, doentiamente, admira a si mesmo refletido no espelho que é o outro.

Entre o fim de uma utopia e o início de outra (da qual conheceremos os problemas alhures) está a zona da sobriedade e equilíbrio.
É o que podemos fazer, a priori.
Sermos verdadeiros surfistas da vida, sempre a favor da onda, encontrando o ponto de equilíbrio para surfá-la de maneira tranquila.
E esse equilíbrio vem de coisas que não são mercadejáveis: os valores humanos orientados pela razão.

Uma forma de luta simples, mas que define quem realmente se é: parar de comer carne.
Isso evita queimadas e mostra que a pessoa não concorda com o sistema de violência, dor e morte no qual se baseia a alimentação dos bisonhos que apoiam todo tipo de sofrimento para seu semelhante.

Anote aí: comendo um pedaço de defunto, morto sem defesa e nem piedade, não há como ter moral para criticar coisa alguma na nossa sociedade.

Simples, assim.



celsolungaretti disse...

Caro leitor anônimo DAS 8h07,

não é que eu ache fácil a transição de uma sociedade fundada e aculturada nas relações sociais mercantis para um outro tipo de sociedade na qual a produção de bens e serviços e sua efetiva distribuição se dê pari passu com uma organização social descentralizada, horizontalizada, e feita a partir de critérios mais simples da ordem jurídica e organizacional (que não podemos ditar regras rígidas sobre como será, como se isso fosse uma receita de bolo, mas podemos ter em mente seus princípios norteadores).

Mas considero que mais do que possível tal proposição, a ser construída ao caminharmos em sua direção, entendo que ela é de imperiosa necessidade prática, a menos que queiramos continuar vivendo de modo suicida.

Veja só essa imensa manifestação anunciada para ocorrer em New York e em muitas outras cidades mundo afora contra o aquecimento global (que é resultante da ilogia capitalista e seu sistema de produção predatória); é um exemplo do que pode fazer a força do consenso popular quando direcionada para o bem (quando para o mal, também é poderosa).

Obrigado pela leitura e fico feliz em saber que você faz parte do consenso sobre a necessidade de superação do capitalismo, ao invés de reformá-lo. Se vamos conseguir superá-lo é outra coisa, mas terá sido meritória a nossa tentativa, pois como dizia Rui Barbosa, pior do que perder a luta é ter a vergonha de nunca ter lutado.

Abração, Dalton Rosado.

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