sábado, 15 de junho de 2019

"FIQUEI CONTENTE EM VER OS JOVENS DE 2019 FAZENDO UM ATO DE PROTESTO COM A MESMA DESCONTRAÇÃO DE UMA FESTA"

Não houve paralisação significativa do transporte coletivo em Sampa, poupando-me de caminhar os seis ou sete quilômetros que me separavam do vão do Masp, como prometi que faria em último caso. Fui de ônibus mesmo.

Aqueceu meu coração ver tantos jovens repetindo mais ou menos o que eu fazia 51 anos atrás. Seu entusiasmo ingênuo chegava a me comover. 

Se a reforma da Previdência não parar, nós vamos parar este país! era uma das palavras-de-ordem. Bonito de dizer, difícil de fazer. A acumulação de forças está só no comecinho, vai levar um bom tempo até podermos lançar tal ameaça remotamente a sério.

Uma diferença marcante com as manifestações de 1968 era o jeitão de festa, com várias atrações para manter entretida a moçada (até uma partida pândega de futebol, com direito a narrador brincalhão, num trecho próximo da concentração principal).

Diante do Conjunto Nacional, um grupo musical apresentava-se para algumas centenas de manifestantes. Soou-me meio herética a versão que fizeram do hino da resistência italiana ao fascismo, Bella Ciao, cujos versos belíssimos e trágicos (um partigiano que se despede da amada já antevendo sua morte em combate) foram substituídos pelo blablabla de sempre sobre a reforma da Previdência.  
Mas é uma tarantela empolgante e todo mundo gostou, os aplausos foram calorosos. Ao contrário da minha geração, boa parte desses jovens não mostra razoável conhecimento das (nem grande interesse pelas) lutas travadas antes que eles adentrassem gloriosamente o palco. 

Nós, os de 1968, nos víamos como herdeiros de uma tradição milenar, identificávamo-nos com Spartacus, os iluministas, Giordano Bruno, Bolivar, Garibaldi, os communards de Paris, Marx, Proudhon, Lênin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Sacco e Vanzetti, Guevara e tantos outros pensadores, combatentes e mártires através da História. 

Respeitávamos os camaradas que lutaram contra a ditadura de Getúlio Vargas, idem os que abortaram a tentativa golpista de 1961, tínhamos uma boa noção do que todos esses episódios foram e representaram.

Isso tudo agora parece ter virado papo de museu. A sociedade de consumo e do entretenimento forma pessoas mesmerizadas por um eterno presente, que pouco querem saber do passado e preferem ignorar o futuro ameaçador que as espreita.
Nem mesmo os insatisfeitos e descontentes com a civilização escapam ilesos desse condicionamento mental. Daí ser tão difícil agora organizarmos a resistência à desumanidade no cotidiano, no dia a dia. 

Cada um persegue seus objetivos dentro do sistema e, em certos momentos, todos se juntam em grandes manifestações que podem até gerar uma dinâmica transitória mas que, quando elas são esmagadas pela repressão dos poderosos, desaparece sem deixar rastro.

Pode ser que, conforme a crise do capitalismo intensificar-se ainda mais e os efeitos das alterações climáticas se fizerem sentir com gravidade cada vez maior, chegue um momento em que a união dos setes humanos em torno do bem comum venha a ser o preço da sobrevivência da nossa espécie. 

Mas, se racionalmente concluo que temos pela frente tempos muito difíceis, as minhas emoções vão em sentido contrário: fiquei contente em ver os jovens de 2019 fazendo um ato de protesto com descontração de festa (pelo menos na avenida Paulista, alhures a barra já pesou...). Em 1968 havia sempre a possibilidade de sermos reprimidos violentamente, então nunca íamos com espírito tão leve para as ruas. 

Gostaria de lhes dizer: aproveitem agora, pois adiante a caminhada vai ser bem mais árdua e sofrida

Gostaria de lhes dizer: acumulem boas lembranças, para delas extraírem forças quando sua vontade for colocada em xeque pelo que sofrerem ou pelo sofrimento dos que lhes são caros.

Gostaria de lhes dizer: tentem colocar-se à altura das situações que enfrentarão, pois, mais do que nunca, os momentos serão dramáticos e seus esforços, imensamente necessários.

Sei, contudo, que ou não me ouviriam, ou não me compreenderiam. O que vierem a fazer, dependerá do que suas experiências de vida lhes ensinarem.

Cada geração tem, num curto espaço de tempo e dentro de uma relativa escuridão, que descobrir sua missão, cumpri-la ou traí-la foi uma das falas inesquecíveis da melhor de todas as criações coletivas do Grupo Oficina, Gracias, Senhor. (por Celso Lungaretti)
"Disse o velho, eis aqui o fim de tudo / Veio o moço e continuou"

3 comentários:

Anônimo disse...

É sempre bom ler um texto seu.
Sua escrita escorreita e leve faz pensar que seja fácil escrever assim.
Também comovente seu empenho em se fazer presente.
Eu, mesmo que quisesse, teria dificuldade em ir. As pernas agora fraquejam.
Mas, haja hidroginástica!
Então, cumprimente-se por ainda poder andar e felicite-se pela sensibilidade humana que possui. Seus conselhos são preciosos e sua experiência de vida, decerto, servirá a muitos.
Tranquilize-se quanto a isso.
Fico feliz por você.

celsolungaretti disse...

Tento conviver da melhor forma possível com minhas dores e limitações, companheiro. Ainda posso andar um bom pedaço, desde que seja em passo lento.

Mas, evito situações em que possa haver confronto com a polícia ou com os reaças porque não quero ser uma preocupação a mais para os companheiros.

Nas minhas atuais condições precisaria de ajuda para me safar, então temo que alguém seja agredido tentando me tirar do tumulto.

Obrigado pelo apoio moral. É sempre uma motivação a mais para trilhar até o fim a estrada que escolhi.

Um forte abraço!

J. Cícero Alves disse...

Artigo primoroso e bastante oportuno. Parabéns ao articulista.

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