sábado, 5 de janeiro de 2019

QUANDO AUTORIDADES USAM O NOME DE DEUS, É PARA EVITAR QUE SUAS POLÍTICAS SEJAM SUBMETIDAS AO CRIVO DA RAZÃO

demétrio magnoli
O DEUS DELES E O DE TODOS
"Não usarás o nome de Deus em vão" (Êxodo 20:7). 

Bolsonaro mencionou Deus abundantemente nos seus dois discursos de posse —e sempre em vão.

O Deus que autoriza ou sacraliza escolhas políticas nasce quando o poder se apropria da fé, para separar os filhos de Deus segundo a fidelidade a uma autoridade terrena.

Na Roma imperial, a fé exprimiu a aspiração ancestral de igualdade política. O cristianismo difundiu-se entre o povo pois a proclamação de que "somos todos filhos de Deus" erguia uma muralha lógica contra a discriminação.

Constantino curvou-se a ela e, para conservar o Império, instituiu a tolerância religiosa (313). 

Daí, seguiu-se o Concílio de Nicea (325), a conversão do imperador em seu leito de morte (337) e o Edito de Tessalônica (380), de Teodósio, que elevou o cristianismo à condição de religião de Estado. 

No fim do percurso, completou-se a inversão: o poder terreno adquiria o direito de discriminar invocando o nome de Deus.

A ideia original dos filhos de Deus é inclusiva. São filhos de Deus todos os seres humanos, mesmo os infiéis ou pecadores. O rebanho abrange os que cultuam deuses pagãos e os que clamam contra a autoridade.

Nesse sentido, a fé cristã mantém coerência com o princípio iluminista da igualdade política. “Nós não tratamos de Deus” —a advertência de Alastair Campbell, assessor de Tony Blair, evitou que o primeiro-ministro britânico concluísse seu discurso à nação, no início das hostilidades no Iraque (2003), com a frase “Deus nos abençoe”. 

O veredicto sobre a principal decisão de Blair, de seguir George W. Bush na campanha militar, não caberia a Deus, mas exclusivamente aos cidadãos.

“Agora, nós tratamos de Deus”, escreveu o ministro Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, num artigo para a revista The New Criterion, referindo-se ao Brasil do governo Bolsonaro. 

A frase quase protocolar ensaiada por Blair seria uma súplica e a desejada bênção divina, uma mera hipótese. O Deus de Blair não dirige os eventos humanos, ainda que possa eventualmente aprovar, a posteriori, certas escolhas políticas.

Já o Deus de Trump invocado por Araújo move meticulosamente os pauzinhos da política. 

No caso brasileiro, segundo o artigo, Deus concatenou as ações de Bolsonaro, Olavo de Carvalho e da Lava-Jato com a finalidade de restaurar uma pátria que se tinha perdido. Esse Deus pervertido, um despachante de interesses terrenos, é o que o governo de turno quer que seja.

No discurso político, há um Deus para cada gosto. O Deus da Igreja Católica medieval mandava queimar bruxas e dirigia exércitos de cruzados.

O dos partidos religiosos israelenses exige a continuidade da ocupação de territórios conquistados. O das teocracias islâmicas impõe códigos restritivos de costumes que rebaixam as mulheres a uma cidadania de segunda classe. Aí, em todos esses casos, a palavra divina emana das autoridades políticas e o nome de Deus serve para matar, conquistar, oprimir.

Araújo fala sem parar na tradição judaico-cristã que seria a nossa, sem se dar conta de que essa é uma tradição diversa, heterogênea e, sobretudo, aberta à mudança. Dela, faz parte a laicidade estatal —isto é, o não tratamos de Deus de Campbell. 

No seu pronunciamento de posse no Itamaraty, perante diplomatas frios de vergonha (e também de um cordão de puxa-sacos, como foi Araújo até ontem), ele denunciou um ódio contra Deus que estaria inscrito na agenda global e alinhou o Brasil aos governos populistas dos EUA, da Itália, da Hungria e da Polônia.

O Deus dele é um ídolo: Steve Bannon, o arauto da alt-right americana que tenta construir uma Internacional dos nacionalistas.

Campbell tinha razão. Nenhuma autoridade menciona Deus em vão. O nome é usado para iludir, enganar, trapacear. Para evitar que suas políticas sejam submetidas ao escrutínio da razão. (por Demétrio Magnoli)

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