terça-feira, 20 de novembro de 2018

PRECISAMOS DE MAIS MÉDICOS E MENOS CEGUEIRA IDEOLÓGICA CRÔNICA

por Celso Lungaretti
Duas graves fraturas do novo governo estão desde já expostas: 
— a evidente intenção de impor-se aos professores uma camisa-de-força ideológica, a ponto de eles serem forçados a, em suas aulas, colocarem no mesmo plano ciência e superstição; e 
— o fim da participação cubana no Programa Mais Médicos, precipitada por declarações  ofensivas ao antigo parceiro, feitas, ademais, quando não havia como substituir de imediato os doutores caribenhos (o abandono ao Deus dará vai ser o preço que muitos coitadezas dos grotões pagarão por tal incontinência verbal).
Sempre considerei aberrante que o pagamento dos médicos cubanos fosse entregue diretamente ao governo de lá, o qual fica com a parte do leão: da remuneração mensal de R$ 11.865,00, os prestadores do serviço recebem apenas uns R$ 3 mil e os atravessadores oficiais se apropriam de aproximadamente 75% do bolo. Até o Delfim Netto (aquele ministro da ditadura militar que dizia ser necessário esperar o bolo crescer, para depois dividir) consideraria um exagero.
O objetivo final do programa Escola sem partido

Mas, cabe ao povo cubano decidir que tipo de governo ele quer. 

O grande erro dos governantes petistas foi coonestarem uma situação inaceitável à luz das leis brasileiras. Deveriam ter batido o pé quanto à entrega do salário nas mãos de cada médico, deixando para as autoridades cubanas o mico de cobrá-los, de forma que arcassem sozinhas com o ônus moral de estarem explorando seus profissionais. 

Ainda que Cuba quisesse ressarcir-se pelo investido na formação desses doutores, a proporção aceitável do desconto seria a inversa (75% para os médicos e 25% para o governo), ou menos.

A pusilanimidade petista deu pretexto para a demagogia destrambelhada bolsonarista e o resultado foi o pior possível, conforme se constata neste contundente artigo do jornalista e blogueiro Josias de Souza, que está longe de ser um esquerdopata ou um petralha:
QUANTOS JALECOS NACIONAIS SUBSTITUIRÃO CUBANOS?.
Ao se retirar do Programa Mais Médicos, Cuba forçou o Brasil a lidar com uma encrenca que fora enviada à UTI em 2013 e vinha sendo mantida desde então em coma induzido. De repente, o país foi forçado a lembrar que faltam médicos nos fundões miseráveis do mapa e nas beiradas empobrecidas das regiões metropolitanas. 

Ao ordenar aos seus doutores que façam as malas, a ditadura de Havana ofereceu aos similares nacionais a oportunidade de informar à opinião pública brasileira se fazem parte da solução ou se integram o problema.

“O Brasil conta com médicos formados no país em número suficiente para atender às demandas da população”, apressou-se em informar o Conselho Federal de Medicina em nota oficial divulgada na semana passada. Há cinco anos, quando os cubanos começaram a desembarcar no Brasil, a mesma entidade reagiu com o fígado: ''Não admitimos uma medicina de segunda para os mais carentes. Até porque quem está no governo, quando adoece, vai para hospitais de primeira linha'".

Faltou dizer que, numa cidade sem médico, não há medicina de segunda nem de primeira linha. Em localidades assim, o que há são doentes desassistidos, tratados como seres humanos de última linha. Ninguém se lembra. 

Mas nessa mesma época em que a corporação pegou em bisturis para defender sua reserva de mercado, o médico cubano Juan Delgado, recebido com vaias no aeroporto de Fortaleza, iluminou com poucas palavras a falta de nexo da revolta dos jalecos nacionais.
"Vamos ocupar lugares onde eles não vão. Impressionou-me a manifestação. Diziam que somos escravos, que fôssemos embora do Brasil. Não sei por que diziam isso, não vamos tirar seus postos de trabalho. Isso não é certo. 
Seremos escravos da saúde, dos pacientes doentes, de quem estaremos ao lado todo o tempo necessário. Os médicos brasileiros deveriam fazer o mesmo que nós: ir aos lugares mais pobres prestar assistência."
Nesta 3ª feira, o Diário Oficial da União publica um edital oferecendo a médicos brasileiros cerca de 8,5 mil vagas ocupadas por cubanos. A novidade foi anunciada na véspera pelo ministro Gilberto Occhi (Saúde), num encontro com prefeitos. No mesmo evento, Michel Temer declarou que nenhum município ficará desprovido de assistência médica. Acredita quem quer. Duvida quem tem juízo.

No início do ano, a Faculdade de Medicina da USP divulgou o estudo Demografia Médica 2018. Revelou a existência de uma quantidade recorde de médicos no Brasil: 452 mil profissionais. 

Em teoria, isso garantiria 2,18 médicos para cada mil habitantes. Algo muito próximo da taxa registrada em países desenvolvidos como o Canadá (2,7 médicos por mil habitantes) ou Reino Unido (2,8).

O problema é que 63,8% dos médicos brasileiros estão no Sudeste (41,9%), no Sul (14,3%) e no centro-oeste (7,6%). Mais da metade (55,1%) encontra-se nas capitais. 

O Ministério da Saúde informa que os médicos cubanos distribuíram-se em 2.885 cidades, das quais 1.575 não dispunham de um mísero doutor verde-amarelo. 

A grossa maioria dos profissionais enviados por Havana foi para áreas paupérrimas do Norte e do Nordeste. Outra parte ficou em áreas periféricas de centros urbanos. A saída dos cubanos deixará sem médico 28 milhões de potenciais pacientes.

A pergunta que se impõe é: quantos profissionais brasileiros toparão ocupar as vagas dos escravos cubanos? A julgar pela nota do Conselho Federal de Medicina, as 8,5 mil vagas oferecidas pelo Ministério da Saúde não serão preenchidas facilmente. A entidade condiciona o deslocamento dos médicos a uma inexistente carreira de Estado, ao provimento de improvável suporte logístico e remuneração adequada.

Afora o salário de R$ 11,5 mil mensais, não há garantias quanto ao resto. Em vídeo divulgado no inicio do mês, o conselho dos médicos expôs o modelo de saúde pública que espera ver implantado com a posse dos governantes e legisladores eleitores em outubro (assista-o abaixo)

Se o deslocamento dos médicos para as áreas desassistidas depender do surgimento do mundo idealizado pelos doutores, os doentes miseráveis podem cair de joelhos e rezar por um milagre. 

Se Deus não ajudar, os médicos é que não socorrerão. (por Josias de Souza)

3 comentários:

Anônimo disse...

"cabe ao povo cubano decidir que tipo de governo quer". Sim, e acho que decidiriam se tivessem essa oprtunidade. O problema e que a ditadura cubana nao vai perguntar-lhes.

celsolungaretti disse...

A libertação de um povo não pode ser obra de outro povo, caso contrário não passará da troca de uma dominação por outra. O processo tem de ser deflagrado pelos que que querem libertar-se. Povos solidários podem, quanto muito, ajudá-los, mas não substituí-los.

O problema que eu vejo no Mais Médicos é que o governo do PT tomou partido por um governo que estava explorando seus trabalhadores (exatamente como os capitalistas fazem). Deveria pagar o combinado a cada médico e manter-se à distância do processo de partilha daquele valor.

Não era problema nosso, era problema deles. Mas, do jeito como a coisa foi feita, endossamos uma prática vergonhosa.

Anônimo disse...

Em 2012, tive a oportunidade de assistir a uma palestra de técnicos da mineradora Vale, na região de Carajás, em que expunham a forma de "compensações socioambientais" pela exploração do minério de ferro naquela região. Entre as tais "compensações", incluía-se a oferta de serviços de saúde em uma vila construída para a expansão do gigantesco projeto de mineração. O problema que enfrentavam era o de encontrar médicos dispostos a receber, naquele ano, R$ 35 mil mensais. Na hora, achei que tivesse ouvido mal, tão alto era (e ainda é) o valor oferecido. A vila tinha boa infraestrutura e fica próxima a rodovias estaduais. Não é o "fim do mundo". Alguns meses mais tarde, tive a confirmação daquele valor oferecido, pois era uma exceção permitida pelo Programa Saúde da Família. Ainda assim, ficaram sem médicos por todo o tempo em que estive em contato com aquela empresa. Essa experiência me deu uma ideia do tipo de formação por que passam os médicos graduados aqui nos anos recentes.

Grato,

Marco Aurélio

Related Posts with Thumbnails