terça-feira, 2 de outubro de 2018

RELEMBRANDO UM PRIMOR DE CRÔNICA DO APOLLO NATALI: "JÚLIA SAPECA"

Alguns amigos, deslumbrados com histórias da máfia e dos incríveis integrantes dessa organização temível, vivem me pedindo, só porque eu tenho sangue italiano, e como se eu tivesse competência, para contar um caso da máfia da Mooca, bairro da cidade de São Paulo, estado de São Paulo, Brasil, onde passei os primeiros 33 anos de minha vida num cortiço, em meio a muitos italianos.

Nos meus 80 anos de sangue italiano, 33 de Mooca, alguns no Bixiga e outros tantos na Vila Ré, não vi máfia nenhuma. Se tivesse visto, me esconderia. Não sei lidar com os poderosos. O que vi, muito, foi gente levantando cedo todo o dia para ir trabalhar, vivendo a justa vida dos mortais. Apenas tenho como fato real que esse quadro, formado por multidões apressadas se dirigindo ao trabalho toda manhã, me faz feliz e aliviado, porque é sinal de que o bem ainda é maioria neste mundo.

A pedido dos meus amigos, farei esta história parecer ter acontecido senão numa família mafiosa, pelo menos numa família de italianos e seus descendentes, com alguns ingredientes, portanto, que meus amigos gostam. 

Mas, esta história não se passou comigo. Como sei que será inútil fazer crer o contrário, por mais nomes fictícios que eu use, não me importo em contá-la na primeira pessoa. 


Também não posso evitar, vejam bem, que qualquer história contenha, sempre, muita coisa da aventura vivida pelo seu autor.


As pessoas experientes sabem que a estatura moral de um homem é dada pelo seu linguajar e que os valentes são quase sempre mais fanfarrões e medrosos do que fortes. Um espírito superior jamais é grosseiro e seu modo de se expressar é sempre de bom nível. 

Eu gostaria muito de poder me expressar sem valentia e de um modo simpático para contar, com sucesso, sem grosserias, este caso da Mooca. Para ser perfeito nessa tarefa é preciso também que eu tenha bons modos.


No cortiço com vinte famílias e suas respectivas quase cem crianças onde vivi os 33 anos desde bebê, não cresci rodeado tanto assim de bons modos. A não ser os bons modos e o exemplo de amor e de trabalho dados pelos meus pais e avós italianos. 


Engraxate aos seis anos e meio, nesta idade o menino é apenas um bebê, aos 16 ainda estava lá com a minha caixa, na esquina da rua da Mooca com Coronel Cintra. O pedaço era conhecido como Triângulo das Bermudas, pelas terríveis enchentes. 

A menina de que eu gostava  passava por lá de vez em quando, me abraçava pelas costas, eu sentado na caixa, me beijava o cabelo, e um monte de gente com inveja olhando. 


Apanhei em brigas de rua, joguei futebol, dancei, trabalhei, estudei, ajudei, amei, fui traído e rejeitado, como acontece com apenas alguns bilhõezinhos de pessoas pelo planeta. Fui amado também. Pela Júlia, a que me beijava na frente de todo mundo. 

Como contar, sem ser grosseiro, que gostamos um do outro quando tínhamos cinco anos de idade? Claro que ela não se chamava Júlia. Dei-lhe esse nome porque, com a publicação desta história, a menina, hoje uma senhora, correria o risco de ser identificada, o que seria uma grosseria de minha parte. 


O nome Júlia é invenção e uma coincidência. Quando nos conhecemos, e nos anos que se seguiram, eu era pequeno, me lembro, surgiu uma canção que ainda hoje muita gente antiga deve saber, que falava de uma menina chamada Júlia e que contava uma história mais ou menos parecida com a nossa. Ainda me lembrava da letra e até da música, tantos anos depois, quando o Youtube me permitiu matar as saudades (e aos leitores, saberem exatamente do que estou falando):

Uma história como essa não dá vontade de contar?

Só que a minha Júlia não morreu, não. Cresceu. Forte, bonita, muito bonita. E enquanto eu enfiava a cara no trabalho e nos estudos para esquecê-la – ela tinha muitos namorados e era preciso esquecê-la – ela era vista, como toda e qualquer garota, desde que mundo é mundo, com meninas de sua idade, em diversões e passeios, olhares furtivos, arranjando namorado, impulsionadas, principalmente ela, pela lei natural da perpetuação da espécie.

Os olhos brilhantes da minha Júlia foram feitos para outro, se verá. Seu pai era um italiano velho, de escura barba cerrada, de chapéu e sempre soltando nuvens de fumo na chaminé de um cachimbo compridão. Sua mãe era uma velha italiana que vivia escovando os longos e negros cabelos. Os dois apenas me olhavam. Seus olhares parados e demorados me pareciam ameaçadores.

Uma vantagem em se contar uma história é poder fazer com que todos participem. Faço questão de convidá-los para a festa de casamento da Júlia. Meninos e meninas, meus amigos e conhecidos, e também os não conhecidos, vocês estão convidados. Vamos, façam uma pausa no trabalho, esqueçam um pouco os problemas da vida, vamos beber um copo de vinho feito em casa. O fígado ficará inteiro no dia seguinte e os nervos estarão relaxados.

Chegamos. A rua, como vocês veem, não é calçada, é tudo terra. Nessa casa velha na entrada do terreno mora a Júlia. E essa velha casa nos fundos, está vazia. Esse grande abacateiro a meio do caminho esconde a Lua. Venham todos, venham à festa do casamento de Júlia.

É uma festa de italianos e seus descendentes. Todos vermelhos, barulhentos, rindo, bebendo vinho e comendo massa. Apresento minha avó, a minha santa vovó – é a mãe de minha mãe – apresento a nona, mãe de meu pai. Essa italiana muito sorridente que me traz salgadinhos e carinhosamente me coloca na boca é minha bendita mãe. Come, filho, que te faz bem. 

Alguns estão contando piadas picantes sobre noivado, casamento e lua de mel. Meu tio, ah esse meu tio, mulherengo, safado, acaba de contar uma piada. Do cara grandão que tinha casado com uma moça pequena. A mãe dela estava preocupadíssima, mas a tranquilizaram dizendo que os noivos dariam um jeitinho. As gargalhadas são tão engraçadas como todos esses olhares maliciosos.


Vocês todos veem os olhos da Júlia. Pretos, pretos, como jabuticaba. E como brilham. Os cabelos chicoteiam o ar e o corpo é de boas formas. Todos nós a imaginamos nua, não é assim a nossa natureza humana, criada por Deus? 

Mas, é grosseria falar nisso. Nós todos nos devemos calar, embora adivinhemos os pensamentos uns dos outros. Vocês todos olham para mim e perguntam por que não sou eu que estou casando com a Júlia. E eu sei? Os barulhentos italianos estão transbordando de afetividade. A boa máfia faz a sua festa, cantando suas músicas, batendo suas palmas, agitando-se em suas danças. Estão gostando?

Eu tenho vontade de chorar.

Saio da casa velha com meu copo de vinho e me ponho debaixo do abacateiro que esconde a Lua. A brisa é cheia do perfume das flores e das plantas do terreno. Tento respirar fundo, mas o ar não entra nos pulmões e o pouco que entra não quer sair. Penso no que tenho de fazer no dia seguinte, e nos outros, e nos outros.

Eu quero a Júlia e o que a vida me dá? Uma rotina sufocante, sem a Júlia. Ela aparece à porta, suada. A lua pinta de azul seu longo vestido branco. Seu rosto tem as profundezas dos mistérios da vida. A casa está preenchida com música e bater de palmas compassadas e ligeiras. 


Nesse momento, eu sou um italianinho nascido no Brasil, com o copo de vinho na mão, o coração na boca e o sangue percorrendo vertiginosamente seus caminhos.

Júlia sai da casa e, parada à porta, olha para os lados e me acha. Seus olhos  calmos e parados no rosto alegre me dão medo. Como faróis de uma fortaleza à beira-mar, me enviam uma carga de brilho que me deixa paralisado. Que olhar, esse, meu velho conhecido. Ah, os olhares!

Quando tínhamos cinco anos, Júlia me dirigiu um olhar assim. Deus viu como eu gostei. E lá das alturas, Ele deve ter sorrido ao contemplar a cena das suas duas criaturinhas se atraindo. Certamente Ele não se sentia grosseiro por ter criado aquelas duas pequenas almas com seus complexos mecanismos instintivos. Não deve ter considerado grosseria quando você, Júlia, sem pronunciar palavra, encostou em mim com força e não se escandalizou com o que fazíamos debaixo daquela escada. 


Nessa época uma canção napolitana era muito cantada, e ainda é, em todo o mundo, lembra? É assim: quem diz que as estrelas são luzentes não conhece esses teus olhos que você tem na fronte.

O horror de minha vida é acordar de madrugada e ver, deitada ao meu lado, a mulher que eu não amo. Júlia ergueu ligeiramente o vestido de noiva para não arrastar na terra e veio falar comigo. Como contar, sem ser grosseiro, com palavras de bom nível, um ato natural de seres humanos que aconteceu em seguida? A mobília do porão sujo dos psiquiatras...


Ela perguntou se eu era seu amigo e se faria um favor. O homem é um joguete nas mãos de certas mulheres, assim é a vida. E o que eu não faria por ela? Ela disse que ia arrumar o vestido na casa velha dos fundos e eu teria de ficar à porta vigiando para não deixar ninguém entrar. Fiquei. 


Cada prazo que se vence para se esquecer um amor é uma eternidade. Mas algumas eternidades são mais longas do que outras. Realmente, quem consegue enfrentar com indiferença uma separação eterna de tudo o que ama?  Quem cai, sem gritar, no abismo que traga as nossas forças, as nossas esperanças? Este animal raro aqui jamais cobiçou a mulher dos outros.

Júlia demora para sair e eu me aproximo da porta, pensando, contrariado, que duas ou três coisas são suficientes para fazer um homem feliz: uma casa velha com forro de madeira, sujo pela fumaça do fogão à lenha, um gatinho, um cachorrinho, a mulher que ele ama e a cama de casal desarrumada. 


Ouço vozes dentro da casa e respirações ofegantes. Aproximo-me e, grosseria das grosserias, espio por frestas da janela carcomida e desbotada. 


Um momento cósmico de uma vida. Júlia tinha recolhido todo o vestido à altura da cintura e, com vontade própria e habilidade, assim o mantinha. Praticava, de pé, na noite de núpcias, com o garanhão do bairro, o ato mais conhecido do mundo. Se não desmaiei naquela noite não desmaio nunca mais.

Bela menina de cabelos negros, como diz a música italiana. Trabalhava duro numa fábrica e limpavam o dinheiro dela em casa, todo o mês, eu sabia. Júlia, existem pessoas boas e más. As boas, às vezes, querem se aproximar do diabo por pura curiosidade, apenas para saber como ele é. Como é o diabo, Júlia?
O casamento, como diz a religião, deve fundar-se na afeição dos seres que se unem. Na poligamia não há verdadeira afeição. Não há mais do que sensualidade. A compulsão pela promiscuidade fulmina a mais viva afeição entre dois seres. 

Para Júlia, por fortuna, era noite de Lua, como diz a música italiana. Para o garanhão, também. E para mim também, que sempre gosto de usar todos os meios possíveis para testemunhar afeição aos outros.

Júlia, tenho tido você no meu coração a vida inteira e agora você tem a coragem de me deixar. Pensarei em você por toda a vida. Filho meu, deixe-a estar, ela não serve para você. Estrelas, estrelas, porque vocês não me respondem? Assim choram as músicas italianas.

Meus amigos. Soube, anos mais tarde, que o garanhão da casa velha e do abacateiro que esconde a Lua morreu de tanto beber. Pobres homens, que desconhecem a natureza feminina. Eu desconheço a natureza feminina.

Não fiquem tristes, meus amigos. Se isso tudo tivesse mesmo acontecido comigo, teria enfrentado a situação com vários trunfos. Primeiro, tenho uma capacidade especial  de renúncia. O que não é meu não quero. 


Depois, sei que o homem é um tolo em querer eternizar momentos. Tudo muda e o que é hoje não será amanhã. Hoje somos jovens e bonitos, amanhã velhos e feios, enrugados, esqueleto deformado. Num belo e determinado dia seremos sepultados. Nada mais, nada menos. 

Sei que tenho o Universo pela frente. A minha maior frustração é não ter voz para  cantar canções napolitanas. E, como diz uma delas, tudo é passado e eu não penso mais. De mais a mais, se tudo isso tivesse mesmo acontecido comigo, no dia da festa eu iria deitar no colo da minha avó. Ela sabia dizer as coisas certas, em napolitano. Me diria: não fique triste, viu? Jesus vai te abençoar. Deus tem muito para te dar, meu filho.

Eu conheci a Júlia, sim, uma menina bonita que fez o que esta história conta. Só que, se pertencesse mesmo a uma família de italianos, teria saído no jornal. Eu vi a Júlia, outro dia, cabelos branquinhos, branquinhos. Subia uma ladeira, bem devagar, se segurando nas paredes. Teve filhos, netos.


Sempre às terças-feiras, este blog
republica as melhores crônicas do seu
inesquecível colaborador Apollo Natali

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