OS 50 ANOS DA PRIMAVERA DE PARIS
Já lá se vão 50 anos desde o maio de 1968 na França.
Tal movimento representou a mais clara manifestação de insatisfação popular contra os valores capitalistas e seu modo de vida, justamente no momento em que a França poderia se jactar de uma predominância econômica sobre seus vizinhos europeus e o restante do mundo, e da possibilidade de confirmação vitoriosa do Estado do bem-estar social.
Era o ápice dos incríveis e revolucionários anos 60 que, infelizmente, iriam ser eclipsados pela hipocrisia conformista da década seguinte, que em nosso país foi marcada pelo falso milagre brasileiro patrocinado pelo governo militar com o beneplácito dos que estiveram na base do golpe de 1964, os Estados Unidos e sua Operação Condor para a América latina, bem como pela perseguição raivosa e fascista aos que ainda desejavam manter de pé as bandeiras revolucionárias da década anterior.
Aquele movimento contestatório de estudantes e trabalhadores já está sendo encarado como uma segunda revolução francesa, dada a sua importância para o significado do conceito de Estado e da sociedade industrial produtora de mercadorias,
Isto porque muito mais relevante do que os resultados práticos político-institucionais obtidos pelo movimento.em termos de mudanças na correlação de força e nos organogramas do poder, o maio de 68 mexeu com a cabeça das pessoas, modificando seu modo de pensar e de agir.
Iniciado a partir de reivindicações estudantis, sob o comando de Daniel Cohn-Bendit, o movimento se alastrou para os trabalhadores de um modo geral, tanto que 10 milhões deles aderiram (cerca de 2/3 de toda a força de trabalho do país) durante 15 dias; e teve tal apoio popular que levou cerca de 1 milhão de pessoas em praça pública.
Saiu, assim, do controle das lideranças sindicais e partidos de esquerda para confrontar não apenas o governo do general Charles De Gaulle (cujo aparelho policial se mostrou impotente para conter as manifestações), mas a própria essência do sistema produtor de mercadorias.
Nem mesmo o Partido Comunista Francês (que em certo momento tentou direcionar o movimento no sentido de acordos políticos institucionais) conseguiu colocar um freio na avalanche contestatória, que mais pareceu ter a força de uma inundação que tudo arrasta.
Um das frases da Internacional Situacionista, representada por Guy Debord (autor do livro A sociedade do Espetáculo, de 1967), críticas à linha stalinista do marxismo tradicional, inscritas nos muros de Paris, era a que serve de epígrafe para este artigo: Ne travaillez jamais, questionando a essência do sistema produtor de mercadorias, pois negava não apenas o quantum de remuneração dos trabalhadores, mas o trabalho assalariado em si, considerado como fonte de toda a miséria capitalista.
Diante da Sorbonne: sejam realistas, peçam o impossível. |
Outro slogan memorável: A imaginação ao poder. Uma heresia para os conformistas que, independentemente de orientações ideológicas, preferiam manter-se nos caminhos rotineiros da política convencional a embarcarem na jornada ao desconhecido proposta pelos jovens.
O maio de 68 colocou, portanto, em xeque tanto a direita quanto a esquerda tradicional, que mais se escandalizou do que deslumbrou ao ver a utopia revolucionária ganhar as ruas e erguer barricadas como as da Comuna de Paris de 1871.
O movimento destacava aspectos como sexualidade e prazer na sociedade mercantil, criticando-a por transformar todas as pessoas em peças de uma engrenagem sufocante da vida social. Nada mais atual.
Naqueles dias todo o sistema capitalista francês, tanto do ponto de vista econômico como institucional sentiu a força de que é capaz a mobilização popular. As fábricas, grande comércio e setores de serviços passaram às mãos do povo, ante a impotência do aparato repressivo.
As forças militares, rechaçadas pelos cidadãos, não tiveram como conter o transbordamento de resistência e alegria dos que lutavam ao tomarem seus destinos seus destinos nas mãos. A greve geral que se seguiu às manifestações levou uma multidão de mais de 1 milhão de pessoas às ruas de Paris, contando com a adesão de quase todas as profissões.
Entretanto, ainda que a insatisfação com o sistema fosse manifesta, o movimento não teve depois continuidade, por falta de uma proposição teórica que soubesse aglutinar todo o potencial revolucionário nele contido. Não estava claro que o passo seguinte deveria ser a abolição dos construtos capitalistas, alicerçados por suas categorias fundantes: trabalho abstrato, trabalhador, dinheiro, mercadorias, mercado, estado e política.
Na esteira do vácuo de encaminhamentos consequentes como a tomada das fábricas para a produção de bens socialmente úteis e serviços necessários ao consumo cotidiano, veio uma retomada do controle por parte dos que entendem que somente pode existir vida social a partir da produção de valor (dinheiro e mercadorias) e de uma organização estatal verticalizada.
Paulatinamente os trabalhadores recomeçaram a produzir mercadorias; os dirigentes sindicais voltaram à sua rotina de negociação de pedintes de melhoras salariais e consequente afirmação do trabalho abstrato; as instituições do Estado retomaram o discurso hipócrita habitual, de defesa da cidadania; e se restabeleceu o marasmo opressor preexistente.
Entretanto, como não há mal que dure para sempre, ainda reverberam nos ouvidos dos cidadãos os ecos do maio de 68, até porque a insatisfação popular é agora acirrada pela crise irreversível do capitalismo, com ingredientes novos como a insensatez ecológica suicida.
Por Dalton Rosado |
Nunca foi tão necessário reatarmos os fios da História, com a volta dos cidadãos às ruas, às greves e às barricadas, nestes tempos em que o capitalismo novamente nos apresenta sua face mais medonha e as condições novamente estão dadas para suas vítimas o confrontarem em ampla escala, como naquele ano memorável em que o povo francês, de tantas jornadas libertárias, por algumas semanas tomou conhecimento de sua força.
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