segunda-feira, 30 de outubro de 2017

SÉRIE "1968, UTOPIA DO PASSADO OU PROJETO DE FUTURO?" – 2: FRAGMENTOS DE UMA REVOLUÇÃO.

"A efervescência entre os estudantes era apenas a manifestação mais evidente do descontentamento da sociedade francesa. Apesar do auge econômico, os empresários franceses haviam aplicado uma pressão violenta sobre os trabalhadores. Abaixo da superfície de aparente calma existia um enorme acúmulo de descontentamento, rancor e frustração. Já em janeiro houve violentos conflitos durante uma manifestação de grevistas em Caen.

A greve geral de 13 de maio marcou um ponto de inflexão qualitativo. Centenas de milhares de estudantes e trabalhadores se lançaram às ruas de Paris. Uma ideia da situação é a descrição que se segue da poderosa manifestação de um milhão de pessoas que tomaram as ruas de Paris no dia 13 de maio:
'Fileiras passavam incessantemente. Havia seções inteiras de trabalhadores de hospitais com seus jalecos brancos, alguns carregavam cartazes onde se podia ler Où sont les disparus des hôpitaux? (Onde estão os feridos que desapareceram dos hospitais?). 
Cada fábrica, cada centro de trabalho importante parecia estar representado. Havia numerosos grupos de ferroviários, carteiros, gráficos, metroviários, aeroportuários, eletricistas, comerciários, advogados, garis, bancários, trabalhadores da construção civil, vidreiros, químicos, faxineiros, empregados municipais, pintores e decoradores, trabalhadores do gás, balconistas, escriturários, trabalhadores do cinema, motoristas de ônibus, professores, trabalhadores das novas indústrias de plástico, todos eles em fila, o sangue da sociedade capitalista moderna, uma massa interminável, uma força que podia arrastar tudo que estivesse em seu caminho, se assim o desejasse'
Os dirigentes dos sindicatos esperavam que esta manifestação fosse suficiente para deter o movimento, não tinham intenção de continuar e estender a greve geral. Para eles, a manifestação era apenas uma maneira de liberar vapor. Porém, uma vez iniciado o movimento imediatamente ganhou vida própria. A convocatória de greve geral foi como uma grande rocha lançada sobre um lago tranquilo. As ondas se estenderam a cada canto da França. Ainda que houvesse apenas aproximadamente 3 milhões de trabalhadores organizados em sindicatos, participaram da greve cerca de 10 milhões e começou uma série de ocupações de fábricas em toda França.

No dia 14 de maio, um dia depois da manifestação de massas em Paris, os trabalhadores ocuparam a Sud-Aviation em Nantes e a fábrica da Renault em Cléon, seguidos pelos trabalhadores da Renault em Flins, Le Mans e Boulogne-Billancourt. Greves foram iniciadas em outras fábricas por toda a França, como em RATP e SNCF. Os jornais não saíram. 

No dia 18 de maio, os mineiros do carvão pararam de trabalhar e o transporte público ficou paralisado em Paris e em outras cidades importantes. Os trens foram os seguintes, depois o transporte aéreo, os estaleiros, os trabalhadores do gás e da eletricidade (que decidiram manter o abastecimento doméstico), os correios e as barcas que atravessam o Canal da Mancha.

Os trabalhadores tomaram o controle dos recursos petroleiros em Nantes, negaram a entrada a todos os caminhões-tanques que não tivessem a autorização do comitê de greve. Foi formado um piquete no único fornecedor de gasolina que funcionava na cidade, assim garantiu-se que o único combustível liberado era para os médicos. Foram estabelecidos contatos com as organizações camponesas nas zonas periféricas, organizou-se o abastecimento de comida, os preços foram fixados pelos trabalhadores e camponeses. 

Para evitar a especulação, as lojas tinham que deixar à vista um adesivo com as palavras: Esta loja está autorizada a abrir. Os preços estão sob supervisão permanente dos sindicatos. O adesivo ia assinado pela CGT, CFDT e FO. Um litro de leite era vendido por 50 centavos, seu preço normal era de 80 centavos. O quilo da batata baixou de 70 para 12 centavos. O quilo da cenoura passou de 80 a 50 centavos e assim por diante.

Os estudantes, os professores, os profissionais, camponeses, cientistas, jogadores de futebol, até mesmo as bailarinas do Folies Bergères foram à luta. Em  Paris os estudantes ocuparam a Sorbonne. O teatro l'Odeon foi ocupado por 2.500 estudantes e os estudantes do ensino médio ocuparam suas escolas:
'A febre de ocupação afetou a intelligentsia. Os médicos radicais ocuparam as sedes da Associação Médica, os arquitetos radicais proclamaram a dissolução de sua associação, os atores fecharam todos os teatros da capital, os escritores encabeçados por Michel Butor ocuparam a Societe de Gens de Lettres no Hotel de Massa. Inclusive os executivos das empresas participaram ocupando durante um tempo o edifício do Conseil National du Patronat Français, depois se deslocaram para a Confederation Generale des Cadres' (David Caute). 
Como as escolas estavam fechadas, os professores e os estudantes organizaram vigílias, brincadeiras, comidas gratuitas e atividades para os filhos dos grevistas. Foram criados comitês de mulheres de grevistas que tiveram um papel importante na organização do abastecimento de alimentos. Não só os estudantes, como também os advogados profissionais estavam infectados pelo vírus da revolução. 

Os astrônomos ocuparam um observatório. Houve uma greve no centro de pesquisa nuclear de Saclay, onde a maioria dos 10 mil empregados eram pesquisadores, técnicos, engenheiros e cientistas. Até a igreja foi afetada. No Quartier Latin, jovens católicos ocuparam a igreja e exigiam debates no lugar das missas.

O PODER NAS RUAS

Os distúrbios continuavam em Paris, os trabalhadores e estudantes desafiavam o gás lacrimogêneo e as baterias de policiais. Numa só noite houve 795 presos e 456 feridos. Os manifestantes tentaram incendiar a Bolsa de Paris, considerada um símbolo odiado do capitalismo. Um comissário de polícia foi morto em Lyon, atropelado por um caminhão.

Uma vez na luta, os trabalhadores começaram a ter iniciativas que iam mais além dos limites de uma greve normal. Um elemento fundamental na equação foram os meios de comunicação de massas. Formalmente, são armas poderosas nas mãos do Estado, mas também dependem dos trabalhadores, que fazem funcionar as emissoras de rádio e televisão. No dia 25 de maio, a rádio televisão estatal, a ORTF, entrou em greve. Suprimiram as notícias das oito da noite. Os gráficos e jornalistas impuseram uma espécie de controle operário sobre a imprensa. Os jornais burgueses tinham que submeter seus editoriais ao escrutínio e deviam publicar as declarações dos comitês de trabalhadores.

A Assembleia Nacional discutiu a crise universitária e as batalhas do Quartier Latin. Porém, os debates nos salões da assembleia já eram irrelevantes. O poder havia escapado das mãos dos legisladores e agora estava nas ruas. 

No dia 24 de maio, o presidente De Gaulle anunciou o referendo no rádio e na televisão. O plano de De Gaulle, de realizar um referendo, foi frustrado pela ação dos trabalhadores. O general foi incapaz até mesmo de imprimir as cédulas do referendo devido à greve dos trabalhadores das gráficas franceses e a negativa de seus colegas belgas de atuarem como fura-greves. 

Este não foi o único exemplo de solidariedade internacional. Os condutores de trens alemães e belgas detinham seus trens na fronteira francesa para não romper a greve.

As forças da reação, até aquele momento em estado de choque e obrigadas a estar na defensiva, começaram a se organizar. Foram criados Comitês de Defesa da República, como tentativa de mobilizar a classe média contra os trabalhadores e estudantes. 

A correlação de forças de classe não é uma questão puramente numérica do tamanho da classe trabalhadora em relação ao campesinato e da classe média em geral. Uma vez que o proletariado entra na luta decisiva e demonstra ser uma força poderosa na sociedade, atrai rapidamente a massa explorada de camponeses e de pequenos comerciantes que são vítimas dos bancos e dos monopólios. Este fato era evidente em 1968, quando os camponeses levantaram bloqueios nas estradas ao redor de Nantes e distribuíram comida grátis aos grevistas."

(trecho do artigo A Revolução 
Francesa de Maio de 1968,
do escritor e analista político 
britânico Alan Woods, 
editor do site marxist.com)

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