Por Ferreira Gullar |
NÃO CUSTA NADA ACREDITAR QUE UMA NOVA ARTE ESTÁ PARA NASCER
Se eu tentasse entender o que hoje se chama de arte contemporânea -que, aliás, tem um número indeterminado de definições-, teria que me ater a dois fatores fundamentais: a arte e a técnica.
Aliás, esses são os fatores inevitavelmente presentes em todas as manifestações artísticas, quaisquer que tenham sido os rumos que elas tenham tomado.
Para me fazer entender melhor, devo me referir a alguns movimentos altamente significantes da arte ocidental que marcaram época e definiram o futuro dessa arte.
Um dos exemplos do que digo foi a fase da arte constituída pela pintura mural, quando a expressão criativa se confundia com o próprio processo de elaboração da superfície pintada, no muro.
Nessa etapa da pintura, tanto a matéria pictórica quanto a cor nasciam no mesmo material que constituía a parede. Como o próprio nome está dizendo, essa arte era própria do muro, ela nascia no muro, da terra, dos detritos, do pó colorido, enfim, de tudo aquilo que constituiria a parede de uma capela, do mural de um convento. Uma coisa dependia da outra. Não havia, consequentemente, a expressão pictórica autônoma, fora da parede.
Surgiu então a tela, o que significou por si só uma revolução da parte pictórica que duraria por séculos.
Os murais mexicanos tinham tudo a ver com a revolução |
Se você levar em conta que, para realizar a pintura mural, era necessário o muro, imagine o que significou a descoberta da pintura a óleo, que, por sua vez, possibilitou pintar sobre superfícies autônomas, pintura que não dependia da parede, dando nascimento ao que se passou a chamar tela.
Como a tela não tem que estar inevitavelmente pendurada na parede, surgiu a possibilidade de o pintor realizar tantas telas quanto quisesse, onde lhe fosse permitido. Isso deu origem aos colecionadores de arte e aos museus, que passaram a exibir e a manter em seus acervos dezenas e até mesmo centenas de obras pictóricas. Como se não bastasse, esse fato fez nascer o mercado de arte, que deu um impulso extraordinário às realizações pictóricas.
Além do mais, a pintura a óleo possibilitou o aperfeiçoamento técnico da pintura, emprestando-lhe o caráter realista nunca obtido antes. Não posso dizer se foi esse caráter realista que deu origem à fotografia -a verdade, porém, é que a capacidade que a fotografia possibilitava, não de imitar a imagem real, mas de captá-la, determinou uma verdadeira revolução na arte da pintura. De certo modo é daí que nasce a pintura impressionista, que determinaria uma mudança radical na história da pintura.
A partir de então, em vez de pretender copiar fielmente a realidade exterior, a pintura, por assim dizer, passa a inventá-la. De fato, uma paisagem de Monet não tem qualquer propósito de retratar o mundo objetivo tal como ele se apresenta à lente fotográfica, pelo contrário, os recursos pictóricos passam a ser usados para exprimir a experiência subjetiva no mundo real.
Paisagem com tempestade, de Monet. |
Nasce uma nova pintura que quer ser, ela mesma, uma expressão outra do mundo objetivo. Não por acaso Cézanne afirmava que "a maçã que eu pinto não é maçã, é pintura".
Mas o impressionismo foi apenas o início de uma transformação que mudou drasticamente a arte do século 20. Aquela frase de Cézanne trazia nela embutida uma mudança radical que começa com o cubismo de Picasso e Braque.
Como tudo o que estivesse no quadro se tornaria pintura -isto é, arte-, introduziram na tela tudo o que se poderia imaginar: envelope de carta, recorte de jornal, areia, arame e o que mais lhes desse na telha.
Pouco depois, Marcel Duchamp afirmava: "Será arte tudo o que eu disser que é arte". E, então, expôs em Nova York um urinol produzido industrialmente assinado com o pseudônimo de R.Mutt. Estava aberto o caminho para o vale-tudo. Por isso mesmo as Bienais internacionais expõem tudo o que se possa imaginar. A conclusão inevitável é que o que até aqui se chamou de arte já não o é.
Mas, assim como no Renascimento, surgiu uma nova linguagem artística que mudou a história da arte. Assim, não custa nada imaginar que, em função das novas tecnologias, uma nova arte esteja para nascer.
Obs.: a Folha de S. Paulo publicou, neste domingo (11), a última coluna de Ferreira Gullar, que a ditou para a neta Celeste em seu finalzinho de vida.
Quando ela lhe sugeriu que terminassem noutro dia, pois estava visivelmente exausto, Gullar respondeu que era melhor concluírem logo, pois "não sabia o que poderia acontecer".
Embora pintura não seja um assunto habitual neste blogue, o post é uma humilde homenagem que presto a um de nossos imprescindíveis. (CL)
Um comentário:
Parabéns, Celso Lungaretti, pelo generoso artigo sobre o multi Ferreira Gullar.
Em que pese suas posições políticas controvérsas(por quê não ser?) suas obras permanecerão!
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