sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

ALGUNS BRASILEIROS IMPRESCINDÍVEIS

Por Dalton Rosado
Há os que lutam até o fim de suas existências e, assim, prolongam-na por meio do seu exemplo. Tornam-se imprescindíveis e, mais do que isto, imortais. 

Na Igreja Católica brasileira existem exemplos históricos de sacerdotes que dedicaram a sua vida à defesa da justiça contra a tirania do poder. 

Um deles, ainda no início século XIX, chamava-se Joaquim da Silva Rabelo, um jovem filho de portugueses, nascido na cidade do Recife, que viria a se tornar sacerdote com o nome religioso franciscano de Joaquim do Amor Divino Caneca – frei Caneca –, em homenagem a seu pai, um funileiro português que consertava vasilhames. 

Frei Caneca se revelou um sacerdote culto, filósofo que extrapolou os limites do claustro para defender bandeiras populares e lutar contra o absolutismo monárquico português, capitaneado pelo então regente José Bonifácio de Andrada e Silva. [D. Pedro II demonstraria depois ser um monarca mais avançado do que os militares republicanos que o sucederam, o que demonstra que a nossa saga republicana conservadora vem de longe...] 
Até os carrascos o respeitavam 

Tornou-se um dos líderes intelectuais e espirituais da Confederação do Equador, movimento que defendia os ideais revolucionários republicanos (face ao escravismo direto feudal) e que foi sufocado pelos donos do poder local, detentores de títulos nobiliárquicos e aliados da monarquia portuguesa. 

Frei Caneca foi fuzilado por um grupo de militares em praça pública (pois os que exerciam o ofício de carrascos se recusaram a enforcá-lo, tal sua força moral!) como um exemplo para intimidar oposicionistas. 

Segundo o historiador Evaldo Cabral de Mello, frei Caneca foi “o homem que, na história do Brasil, encarnará por excelência o sentimento nativista, apesar de ser curiosamente um lusitano jus sanguinis

Frei Caneca, a exemplo de dom Paulo Evaristo Arns, era a personificação da entrega religiosa à defesa da liberdade; costumava dizer que “quem bebe da minha caneca tem sede de liberdade”.   

Fui advogado co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza, órgão criado por dom Aloísio Lorscheider em 1982, no final da ditadura militar. Dom Aloísio foi mais um dos grandes sacerdotes sulistas do Brasil de descendência alemã, como dom Paulo Evaristo Arns, e como ele, igualmente franciscano e homem de hábitos simples, solidário com os humildes e de grandeza moral inquestionável.  

Como advogado da Arquidiocese de Fortaleza pude observar, na convivência fraterna, a firmeza de propósitos de dom Aloísio quando a questão era a defesa das liberdades, dos direitos civis e da vida. 
Dom Aloísio: altivo face aos poderosos.
Extremamente culto e respeitado internacionalmente, teve o seu nome cotado para ser o primeiro papa de origem sul-americana, na sucessão de Paulo VI; mas, após vários escrutínios, o conclave elegeu o papa João Paulo I, da linha da Teologia da Libertação, que viria a falecer imediatamente após. 

Com a morte precoce de João Paulo I, veio em seguida a eleição do cardeal polonês João Paulo II que tinha outra orientação filosófica, talvez causada pelos traumas do povo polonês com o capitalismo de estado sob o domínio soviético. Dom Aloísio Lorscheider voltou ao Brasil com a mesma humildade e se mantendo altivo face aos poderosos.       

Da mesma estirpe de sacerdotes dedicados à causa do povo brasileiro é seu amigo Leonardo Boff, o eterno frei franciscano de descendência alemã, que tem dedicado a vida ao combate à desigualdade social denunciando o anacronismo genocida da lógica capitalista e de sua ordem política. 

O que dizer de dom Pedro Casaldáliga, o bispo tornado brasileiro de vida modesta, que se junta ao seu povo na caminhada contra as agruras sociais impostas pelo capitalismo?! 
Leia o artigo completo aqui

Existem muitos outros sacerdotes que se miram no exemplo redentor para o exercício da vida sacerdotal e assim se tornaram imprescindíveis à luta de emancipação popular e, como consequência, imortais na memoria libertária por seus exemplos vivificados.

Um deles, que quero destacar: o frade dominicano cearense frei Tito de Alencar Lima, que, por se colocar contra o arbítrio genocida, foi barbaramente torturado e levado à morte psicológica, causada por trauma irreversível. Tornou-se um mártir da liberdade.         

Aproveito para exaltar, também, aqueles que hoje dedicam as suas vidas à libertação do povo, desapegados do poder e das exigências imanentes ao seu exercício despótico, num exemplo presente. 

O que dizer de uma Maria Luíza Fontenelle, a primeira mulher a ser eleita prefeita da uma capital, vinda das lutas populares e que exerceu o poder municipal em Fortaleza sem conciliar com o que há de mais podre na triste história política republicana, marcada pela corrupção e pela conciliação com a ordem sistêmica, e que, por isto mesmo, foi perseguida pelos que detêm o controle político partidário submisso a tal ordem espúria e pelos seus beneficiários mais diretos?! 

Maria Luíza, ao compreender o significado do exercício do poder político, apeou-se dele para denunciá-lo e, assim, colocar-se com autoridade à margem da correnteza da unanimidade acomodada com o que está posto, condicionando-se à crítica capaz de dar passos decisivos em busca da emancipação humana. Jamais se tornou escrava da política.  

Há muitos outros filhos do povo que travaram o bom combate até o último dos seus dias, tornando-se, por isto mesmo, imprescindíveis e imortais por seu exemplo de luta, independentemente de quaisquer críticas ao conteúdo de suas ações. 

São os casos do capitão Carlos Lamarca; do dirigente político Carlos Marighella; do líder estudantil Honestino Guimarães; do jornalista Vladimir Herzog; dos metalúrgicos Manoel Fiel Filho e Santo Dias, da Pastoral Operaria; do parlamentar Rubens Paiva; da brasileiríssima alemã Olga Benário e seu marido Luiz Carlos Prestes (o cavaleiro da esperança); de Herbert José de Souza  (o Betinho, irmão do Henfil); do advogado das liberdades democráticas Sobral Pinto; da dra. Zilda Arns que fundou a Pastoral da Criança; do ecologista Chico Mendes e tantos outros que deixo de citar por falha de memória, igualmente imprescindíveis.  

Além das centenas de resistentes dizimados pela ditadura militar, cuja relação completa pode ser acessada aqui.

Aos que tombaram na defesa da liberdade e da busca de emancipação do povo dedicamos a nossa maior reverência neste momento de pesar pela perda do imprescindível e imortal dom Paulo Evaristo Arns..

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