sábado, 6 de agosto de 2016

DALTON ROSADO PERGUNTA: QUAL É O RESTAURANTE EM QUE VOCÊ SEMPRE COME?

A COERÇÃO SISTÊMICA À SERVIDÃO VOLUNTÁRIA
.
"Para que os homens, enquanto neles resta vestígio de 
homens, se deixem sujeitar, é preciso uma das duas 
coisas: que sejam forçados ou iludidos. Iludidos, 
eles também perdem a liberdade; mas, então, 
menos frequentemente pela sedução de 
outrem do que por sua  própria 
cegueira.(Étienne La Boétie)
Qualquer um que experimente contrariar as regras do conceito de vencer na vida numa sociedade mercantil paga um alto preço. É assim que se processa a silenciosa e cruel coerção do capital a quem não se submete às regras ditatoriais da relação social sobre a forma valor; a quem não joga o jogo da esperteza do roubo descriminalizado da extração de mais-valia em seu favor, ou ainda, não aceita a subserviência obediente à afirmação e reafirmação dos valores sistêmicos. 

A indução à servidão voluntária se consubstancia através de determinados preceitos, socialmente aceitados, tais como:
– a introjeção nas mentes coletivas de que a descriminalização da extração de mais-valia (leia-se roubo legalmente consentido do tempo de trabalho do trabalhador) é algo natural, saudável, e que deve ser incensada por todos como virtuosa. Nesse sentido, o sistema saiu plenamente vitorioso, pois os indivíduos sociais defendem o roubo do trabalho abstrato como um ganho civilizacional natural e virtuoso, a ponto de ser visto como herético quem ousa contrariá-lo; 
– a aceitação das regras do direito constitucional e ordinário como se estas regras correspondessem à busca da realização do ideal de justiça; da vontade consensual da sociedade; e como se a obediência aos seus ditames contribuísse para a paz social;   
– o carreirismo profissional tanto nas esferas privadas como nas esferas públicas do trabalho abstrato, na qual o seu colega de trabalho é seu adversário, e o seu sucesso pessoal não leva em conta o crescimento e o bem estar coletivo, mas o sucesso e o bem-estar pessoal ou categorial excludente. O esmero em ser serviçal voluntário ao sistema chega nesses casos, ao paroxismo de se negar gestos de solidariedade, lealdade e senso de justiça ao colega ao lado em nome de um hipotético interesse profissional, empresarial ou social maior. Trata-se de uma inversão completa do sentido da virtude da solidariedade dos que assim se comportam (felizmente existem exceções!);
– a delação e perseguição: 
  • àqueles que criticam a defesa da qualificação do voto e afirmam ser o processo eleitoral uma quimera destinada a enganar os crédulos; 
  • àqueles que defendem a melhora salarial coletiva e encabeçam as greves e não são puxas-sacos dos chefetes; 
  • àqueles que se recusam às práticas desleais com colegas aceitando a politicagem nos cargos públicos e privados, a mentira, ações e omissões prejudiciais aos seus colegas nos cargos privados; 
  • àqueles que em suas profissões denunciam as injustiças, mentiras e manipulações das consciências coletivas;
  • àqueles que defendem a igualdade social e se contrapõem ao conceito da glorificação da lei de Gerson como regra de conduta, sustentando que a existência da pobreza e da riqueza não são preceitos bíblicos imutáveis.  
– a prática da insensibilidade e da avareza como contraponto à generosidade, considerando esta última como atitude própria de um otário;
– da aceitação da deturpação de valores morais elevados via glorificação de lei da vantagem como regra de conduta ética que tudo justifica.
 OS COMENSAIS DOS RESTAURANTES DA CIDADE
  
Poderíamos aqui estabelecer o funcionamento dos estamentos sociais numa análise a partir do local no qual comem os indivíduos sociais. Seriam três restaurantes e neles se comeria da seguinte forma: 
a) no primeiro restaurante, de luxo, com cardápio à la carte sofisticado, onde comem os manipuladores do capital, que assim os chamo porque, apesar de o capital ser uma propriedade, há uma transitoriedade permanente de mudanças de mãos do capital junto àqueles que se servem à mesa sofisticada do capitalismo (seja por a vida ser finita, e para todos eles, ou, ainda, pelo fato de o capital nunca permanecer numa magnitude estável, aumentando quando o lucro é possível e diminuindo quando há prejuízos nas atividades econômicas e falências empresariais, as quais, no estágio atual de dificuldade de sua reprodução, são cada vez mais frequentes mundo afora.). Frequentam esses restaurantes apenas cerca de 5% das populações das sociedades mercantis; 
b) no segundo restaurante, um self service confortável e variado, comeria a chamada classe média, que é o estamento social intermediário entre os manipuladores do capital e os explorados. Trata-se do que Marx chamou de aristocracia do proletariado, pois, por seu bom nível de informação e cultura, é formadora de opinião, amortecendo o choque entre as classes sociais (à medida que, no afã de pular para a esfera do restaurante à la carte, defende com fervor os interesses do  capital). Trata-se do segmento que, quando é afetado pela recessão econômica e perde poder de consumo (como agora ocorre), tendo então de comer prato feito, pode fazer grandes rebuliços sociais, mas apenas pela volta ao status quo ante, sem, entretanto, negar os postulados capitalistas; 
 c) no terceiro restaurante, que serve um prato feito de comida sempre repetida e preparada com alimentos de segunda qualidade, agora com uma frequência maior de alguns dos antigos membros da chamada classe média, comem os assalariados empregados em geral.  Este segmento é formado por pessoas de instrução de mediana para baixo, trabalhadores operários, capazes de grandes mobilizações em momentos de crises agudas do capitalismo, mas que, pela falta de consciência da necessidade de superação do próprio emprego que lhes garante o almoço, apenas clamam por mais empregos, ou seja, por mais capitalismo. Nesse estamento social se situa 80% da população, dividida em gradações ligeiramente diferenciadas, em cujo último estágio, agora cada vez maior, estão incluídos os que foram empurrados para a miséria absoluta. O que estes mais querem é um mísero prato de comida que lhes mate a fome.      
Observamos, portanto, que, por mais que se critiquem as injustiças sociais flagrantes, elas nunca se dirigem para a contestação da natureza do capitalismo, mas apenas para a forma de administração, o que nos conduz a um eterno retorno para o ponto inicial (depois das guerras). 

O ser humano somente conseguirá a sua emancipação quando se voltar contra a coerção da servidão voluntária, parando de trabalhar; mudando os seus parâmetros de convivência social; e passando a produzir para o sustento coletivo sem a mediação social feita por meio deste elixir da sedução e da cegueira fetichista – o dinheiro.  

Por falar nisso, qual é mesmo o restaurante em que você sempre come? (por Dalton Rosado)

Nenhum comentário:

Related Posts with Thumbnails