A CIGARRA E EU
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Desci do ônibus na avenida Paraguaçu Paulista, na Cidade Patriarca, para cruzar a linha férrea, sem muros nem cercas, em direção à minha casa, na Vila Ré. O metrô ainda não havia chegado no pedaço.
Era uma tarde de sol. O silencio da tarde era a calma para os nervos.
Acontece que eu estava cansado e apático. Aqueles trens, elétricos, eram silenciosos. De cor azul, confundiam-se com o céu. No instante em que, distraído, ia cruzar os trilhos, ouço um canto de cigarra.
Era um canto exagerado, riiiiiiiaaaaaaaaa!!! que me fez parar e voltar para localizar uma provável enorme criatura, numa árvore de tronco e galhos finos, seca, como na história religiosa, de onde partia a gritaria.
Assim que parei, o trem azul e silencioso passou, agora sim, rodas barulhentas, a um palmo de mim. Não fosse o canto da cigarra a me chamar a atenção eu teria morrido.
Quando o trem passou, examinei os galhos secos e não consegui ver cigarra nenhuma. Cruzei os trilhos na esperança de que, distante da árvore, a cigarra se animasse a berrar outra vez. Porque o que ela deu foi um autêntico berro, ao pé do meu ouvido. Nada de cigarra.
Com as pernas bambas, fui embora.
Um dia, sei que vou desencarnar. Entre o inferno, o purgatório e o paraíso, acho que irei para o purgatório, ridícula modéstia à parte, junto com alguns bilhõezinhos de irmãos por aí. Quem um dia viu de perto a morte por estraçalhamento, sabe o que eu senti.
Consegui me tranquilizar com a brilhante ideia de agradecer a Deus, muitas vezes, por me permitir continuar vivendo.
Na manhã seguinte, mais lúcido, voltei à linha férrea para tentar localizar, na árvore seca, a querida cantora que driblou minha morte no berro. O terreno a lado dos trilhos é pedregoso desde que o conheço, faz mais de meio século. Lá nunca teve árvore nenhuma. (por Apollo Natali)
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"Você em breve/ muito breve/ muito
leve/ ouvirá o canto da cigarra..."
leve/ ouvirá o canto da cigarra..."
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