domingo, 26 de junho de 2016

ALGUMAS PISTAS SOBRE O QUE DEVEMOS OU NÃO FAZER EM NOSSA JORNADA PARA A EMANCIPAÇÃO SOCIAL

Por Dalton Rosado
"No paleolítico ninguém 
acreditava no neolítico”
(Millôr Fernandes)
Foi-nos vedado o livre pensar, substituído por uma lógica ditatorial reificada na qual as coisas inanimadas ganham vida e nos dão ordens. 

Trata-se de uma relação social na qual uma abstração, a forma-valor, comanda as nossas ações com a lógica de suas regras socialmente negativas e nos impõe um modo de agir submisso a essas mesmas regras, afastando substancialmente os traços de humanidade que são inerentes à condição humana e nos tornando seres humanos fragmentados pela contradição inconciliável entre o que é justo e o que, sendo injusto, é tido como justo. 

Pergunta-se: como nos rebelarmos contra essa correnteza tão forte que sequer nos deixa pensar em formas alternativas de viver, mesmo diante da cada vez mais célere caminhada rumo ao abismo? 

Há quem diga que o canal da emancipação humana é a participação na vida política institucional. Assim procedendo, contudo, não estaremos domando a fera da política, mas sim sendo por ela cooptados (que Bertold Brecht me perdoe, mas os atos da vida cotidiana mercantil não se constituem como atos políticos, mas como afirmação da própria antivida). 

Há uma ordem constitucional estabelecida e obedecida como se fosse o santo graal que tudo purifica e justifica. A constituição é um dos totens da modernidade ao qual se sacrificam vidas humanas (mas somente quando tal sacrifício interessa à manutenção da lógica fetichista mercantil a que serve, pois, do contrário, tal ordem é comumente desrespeitada). 

Lembro-me da história de um revolucionário eleito para o parlamento, que ao ler a frase do juramento de respeito à constituição, resolveu consultar o partido para saber se era correto jurar obediência à chamada carta magna, que erigia, entre outras afirmações contrárias ao que acreditava, o direito de propriedade em cláusula pétrea (sinonímia para a pedra angular de sustentação da riqueza abstrata, que transforma os bens de uso em instrumentos da acumulação segregacionista e antissocial – a mercadoria). 

O partido, que se considerava revolucionário apesar de institucional, lhe disse que aquele juramento era de mentirinha, e que, assim, podia fazê-lo, caso contrário seria cassado por quebra do decorro parlamentar

E assim, o nosso parlamentar revolucionário jurou a constituição; e de tanto ter de jurar muitas outras iniquidades para conservar o mandato (e o salário, que dividia com o partido), terminou laçado pela gravata, ou seja, esqueceu-se dos seus propósitos revolucionários. Moral da história: uma andorinha só não faz verão.
      
A política é o canal de legitimação de uma ordem mercantil que tem no Estado a sua força institucional reguladora e mantenedora, além de indutora do seu pretendido crescimento, ou seja, de si mesma. Ora, se é assim, como transformar a política, de instrumento imanente do capital em seu contrário? 

Querermos ajustar ações revolucionárias emancipatórias por dentro da política é como querer que um corpo venha a ocupar o espaço de outro no mesmo tempo e lugar; é algo que contraria não apenas a lei da física, mas o raciocínio mais elementar da estratégia de luta de libertação; enfim, constitui-se numa tática de pífios resultados. 
Até o povo, apesar de ter as suas consciências constantemente manipuladas pelas mais diversas formas (midiáticas, educacionais, mas, principalmente, pelo desenvolvimento da mística de que qualquer um pode ficar rico, estímulo básico da esperança vã), já firmou um consenso de que o segmento político é formado por oportunistas e corruptos, em sua grande maioria. O pé de laranja não dá jabuticaba.  

A questão do aprisionamento do pensar é tão grave que quem se atreve a falar mal do valor (dinheiro e mercadorias) se obriga a buscá-lo diariamente como forma de sobrevivência, causando uma aparente contradição entre o discurso e a ação. 

Não é fácil nos desprendermos de uma lógica que está em entranhada nas nossas ações e pensares de forma absolutista. Achamos bonito e justo os sindicatos lutarem por mais empregos e melhores salários sem nos apercebermos de que isto significa pedir mais capitalismo, ou seja, pedirmos mais daquilo que nos escraviza (e agora, sem a possibilidade de atendimento, o que força os dirigentes sindicais à aceitação de pactos infames, como a redução de salários como forma de tentativa vã de manutenção dos empregos). 
   
A única forma de nos emanciparmos é:
a) termos consciência de que aquilo que nos é colocado como verdade, como algo ontológico, desde quando criancinhas; como algo tão natural quanto nossa necessidade de tomarmos água diariamente, qual seja, que a única forma de relação social possível é a produção de mercadorias, não passa uma mentira, a qual agora se evidencia de modo irreversível; 
b) sabermos que todos os gigantescos movimentos da economia global, com suas complexas definições advindas da ciência social denominada economia, não passam de castelos de cartas prestes a desmoronar num cataclismo sem precedentes; 
c) destravarmos a clave imposta pela lógica do sistema produtor de mercadorias, que submete tudo ao crivo da viabilidade de mercado e estimularmos a imensa potencialidade de cada região no sentido do provimento das necessidades de cada região de modo a que haja uma interação verdadeiramente solidária de possibilidades/necessidades, e que disto possam resultar novos conceitos de valores, consentâneos com a evolução da condição humana e de sua racionalidade, distanciando-nos do instinto animal que ainda habita em todos nós, e que é estimulado pela lógica mercantil em seu estágio terminal;  
d) usarmos o saber, riqueza natural da humanidade e por ela construído em meio a um itinerário de sangue, como fator contributivo para o ócio produtivo no qual se exercitem as potencialidades do talento humano em seu próprio benefício, seja na saúde, nas artes ou nos esportes, e não o contrário, como hoje ocorre;      
e) ao invés de mendigarmos mais empregos nas longas filas nas portas de fábricas, escritórios e instituições do Estado, devemos negar o trabalho assalariado e criarmos formas alternativas de produção e sustento, porque, afinal, em nenhum objeto sensível apto ao consumo ou serviço existe um grama sequer de dinheiro. 
Sem querer dar uma presunçosa receita de bolo sobre como deve ser a nova ordem social, essas são pistas sobre o que fazer e não fazer.
.
Uma inspirada alegoria de Sérgio Ricardo, comparando 
o colapso do capitalismo ao dilúvio universal.

3 comentários:

SF disse...

Dalton,
Sua análise do momento atual da vida em sociedade é brilhante.
Não tenho o que acrescentar e nem tenho capacidade para tanto.
Posso estar errado, mas percebo que ao apresentar as alternativas ao modelo vigente você o faz de maneira tímida e hesitante.
É bem capaz de eu estar enganado quanto a minha visão sobre esse ponto e você de fato seja uma daquelas pessoas que sabem que não tem como evoluir os outros por eles.
Pode ser que os jovens comecem a implantar espontaneamente essas atitudes e vivências, que você sugeriu, ao se defrontarem com um sistema em estado falimentar.
Isso acontecendo, e por não terem alguns o embasamento racional do porquê se deve abandonar o fetiche da mercadoria e o modo de vida mercantilista, talvez permitam que outros tipos de fetiches adentrem o novo modo de vida.
Alguns desses vícios antigos como a terra, pois é melhor aceitar que o egoísmo tem base genética do que sonhar com qualquer generosidade inata do ser humano.
A meu ver, a biologia é sensatamente cruel.
Assim, acredito que ao apresentar as soluções desejadas você tem igualmente a capacidade de analisar e rebater logicamente os óbices que surgirão, além de mostrar os caminhos a serem trilhados e os que devem ser peremptoriamente rejeitados.
Não de forma autoritária, mas como o batedor fiel que alerta os demais dos perigos da caminhada em terreno desconhecido.
Acredito que tenha capacidade para tanto.

celsolungaretti disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
celsolungaretti disse...

O DALTON ROSADO NÃO CONSEGUIU POSTAR A RESPOSTA, ENTÃO ME PEDIU QUE O FIZESSE POR ELE. (CL)

Caro SF,

Obrigado pelas palavras de estímulo. A partir de conceitos teóricos podemos incrementar uma práxis social mais consistente do que um agir voluntarista que mesmo sendo bem intencionado pode resultar em equívocos perniciosos à caminhada da emancipação humana. Já se disse que o inferno está cheio de bem intencionados. Há que se ter muito cuidado com uma práxis social pretensamente revolucionária, mas que de fato não o seja, e é por isso que considero que o embasamento teórico correto é a chave para um agir igualmente correto. Isso não é coisa fácil, graças ao fato de que os postulados da luta política dentro da imanência capitalista, que parecem ser transformadores, são enganosos e cômodos e impedem que se conheça a força da consciência revolucionária. Se acaso os trabalhadores tivessem consciência do seu poder (que não têm), e resolvessem, por exemplo, parar de trabalhar por um salário, e dissessem aos patrões privados ou estatais que a partir daquele momento as suas atividades produtivas deixariam de ser mensuradas pelo valor (abolindo o trabalho abstrato), em poucos dias o capitalismo entraria em parafuso e todo o gigantesco poder mundial do capital e seus construtos institucionais virariam fumaça. E aí poderíamos construir um novo modo de produção capaz de prover as necessidades mundiais de consumo em bases verdadeiramente satisfatórias e ecologicamente sustentáveis. Eis aí um exemplo prático de que o saber para agir pode ser imensamente mais forte do que o agir voluntarista cego e inconsciente, dissociado desse mesmo saber.

Tenho me esforçado ao longo de uma rica experiência de 40 anos tateando no quarto escuro onde estão guardados os segredos da emancipação humana, e com os tropeços inerentes à caminhada, em absorver e agir alicerçado em ensinamentos. Somente há pouco mais de 15 anos é que tive acesso ao Marx esotérico (que em muitos pontos contradiz o Marx exotérico, que foi comodamente aceito pelo marxismo-leninismo e navegou equivocadamente nas águas turvas do capitalismo de Estado, com resultados nefastos) e aos pensadores da teoria crítica radical à forma valor/dissociação de gênero como Robert Kurz, Moshe Postone, Anselm Jappe, Issak Rubin, Georg Lukacs, Roman Rosdolsky, Jorge Paiva, e muitos outros que ao longo dos anos vêm tentando decifrar o enigma da esfinge (o capitalismo) e sua necessária superação. Entendo que a realidade está se aproximando celeremente das teorias da crítica da economia política e tornando compreensíveis e aceitáveis muitos pensamentos que até bem pouco tempo pareciam devaneios impossíveis de serem realizados, ainda que consistentes teoricamente.

Não quero me colocar como um guia sábio, líder, ou guru, capaz de dar soluções para tudo, pois sei que a construção teórica e prática da emancipação é uma tarefa difícil, somente factível a partir de muitas mãos, tropeços e recomeços, mas sei que podemos colocar alguns tijolos nessa construção que deve ser acabada coletivamente pelos verdadeiros revolucionários atuais e pósteros.

Acredito no ser humano e no seu crescimento, ainda que reconheça as suas limitações próprias a um processo evolutivo, e sei que se nós sobrevivermos a possíveis catástrofes nucleares, bárbaras ou ecológicas decorrentes da intolerância do atual modo de relação social que é destrutivo e autodestrutivo, teremos um futuro radioso (ainda que devam existir outros tipos de problemas) e os nossos semelhantes do futuro olharão para nós como bárbaros incapazes de enxergar o óbvio: a irracionalidade do nosso atual modo de viver socialmente, e compreenderão que isso decorria da inferioridade própria aos animais racionais em seu processo evolutivo, da mesma forma que consideramos, hoje, uma barbaridade que há apenas 128 anos existisse a legalidade da propriedade de um ser humano trazido acorrentado da África como escravo.

Um grande abraço,

Dalton Rosado

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