Por Dalton Rosado |
Motivo: o Banco Central confiscou os valores dos depósitos para evitar que o Governo Federal deixasse de pagar os salários dos funcionários (já não paga os juros da dívida pública, que estão em moratória, tendo isto inviabilizado a rolagem do total da dívida impagável); é que, em função da alta da inflação, de 10% ao mês, o Estado, já não podendo emitir a moeda nacional que se deteriora diariamente, recorreu, como única solução encontrada, ao confisco dos depósitos bancários.
O sr. Sebastião, que já não recebe a sua aposentadoria há seis meses em razão da falência do Sistema de Previdência Social Federal, se desespera, pois agora já não pode contar com suas últimas reservas financeiras que valiam juros diários, mas agora foram confiscadas.
Ao voltar para casa, desolado, assiste pela televisão à notícia de saques em supermercados por uma turba de famintos, sem oposição da polícia, que está em greve por atraso no pagamento dos salários.
São mostrados os tumultos decorrentes da ação de pessoas denominadas pela empresa de televisão de vândalos, e informa-se que eles serão contidos pela guarda nacional, cujo contingente foi aumentado; ela está sendo convocada para substituir a força militar estadual grevista. Noutros estados houve ocorrências semelhantes e vários saqueadores foram mortos por disparos da guarda nacional.
O vizinho do Sebastião teve a luz cortada por falta de pagamento, e como os funcionários da Companhia Elétrica estejam em greve, ele religou clandestinamente suas instalações à rede, mas já ocorrem apagões de até um dia inteiro e há o boato de que vai faltar energia elétrica permanentemente em toda a cidade por conta da grande inadimplência.
Há escassez de alimentos e cada pessoa tem uma cota limite pessoal de compra somente possível com a apresentação do cartão eletrônico que, no caixa, registra o limite ainda existente num regime de abastecimento estabelecido há três anos (já ocorre um mercado negro, fruto de fraudes nesse controle).
A Belíndia, como de resto os países periféricos do grupo do BP10 (Bloco dos 10 Poderosos), já vive uma situação de anomia social que nem a força das armas tem conseguido normalizar.
Diante desse quadro de barbárie, surgem grupos que ocupam as fábricas no sentido de viabilizar um mínimo de produção destinada à distribuição gratuita aos mais necessitados, e no campo são ocupadas fazendas, com os produtos sendo distribuídos às populações que estão famintas.
Esses grupos, que querem destituir o poder institucional do Estado já desmoralizado e formar uma organização social destinada à produção sem vendas dos produtos fabricados, vêm recebendo a adesão de populares, embora muitos não se conformem com as escassas cotas de bens de consumo recebidas gratuitamente.
Entretanto, a adesão dos mais conscientes tem freado a volúpia dos menos compreensivos, que são considerados contra-emancipacionistas pelos que, com seu esforço físico espontâneo, produzem nas fábricas (eles não querem ser chamados de trabalhadores, pois não são assalariados).
Outro grupo de desempregados se reveza nos serviços de limpeza pública; e mais outro tomou o controle da empresa de abastecimento d’água e está atendendo às necessidades da população com a ajuda dos antigos engenheiros e funcionários experientes, que se solidarizaram no sentido de evitar o colapso desse serviço essencial (e ali não se fala em dinheiro). E por aí vai...
No mês passado o Parlamento foi invadido por populares e os parlamentares (tanto os de direita como os de esquerda, do centro, do sul, do norte, do leste e do oeste) foram encarcerados e estão presos em lugar incerto; os juízes deixaram de fazer audiências e prolatar sentenças por absoluta falta de exequibilidade dos seus julgados, uma vez que ninguém respeita as ordens emanadas da justiça civil (embora continuem recebendo os seus salários) e o Estado já não tem como manter os presos apenados por sentenças penais por falta de estrutura funcional (a grande quantidade de presos inviabilizou financeiramente as prisões, mesmo que transformadas em masmorras).
O núcleo do governo em exercício teve que se transferir do palácio presidencial e funciona clandestinamente em locais itinerantes, sem que seus comandos sejam obedecidos na integralidade.
Os organismos financeiros internacionais tiveram suas falências decretas por um tribunal internacional e já não podem sequer cobrar os juros da dívida pública belindinense, em moratória há quatro anos.
O instituto jurídico da propriedade perdeu o sentido, uma vez que os inquilinos e posseiros se sentem donos de suas ocupações, fato que tem aliviado a grave questão do déficit habitacional e da inadimplência dos alugueis. Os donos das propriedades já não têm como coagir (juridicamente ou por policiais) os posseiros e inquilinos à desocupação dos imóveis urbanos e rurais, e somente algumas fábricas, que contam com forte aparato de segurança armada privada, ainda conseguem manter-se em funcionamento produzindo mercadorias.
Um misto de ordem econômica mediada pelo dinheiro e produção e distribuição gratuita está ocorrendo concomitantemente, e é essa segunda prática aquilo que está a proporcionar alguma viabilidade de vida ao grande contingente de desempregados, que agora está encontrando formas de se inserir na produção sem se importar com salário e sem comprar e vender nada, uma vez que isso já não existe para eles.
Nas escolas os professores que passaram o ano inteiro em greve por falta de salários voltaram às salas de aulas e têm recebido alimentos dos pais dos alunos. Muitos dos alimentos são oriundos de saques ou recebidos dos grupos de distribuição que ocuparam as fabricas de alimentos e lá os processam; outros desses alimentos vêm diretamente do campo e sítios ocupados por grupos de produtores antes sem terra.
Recrudesce a violência urbana e já se contam aos milhares as pessoas mortas na disputa fratricida pela vida. Opera-se uma luta contra a barbárie: de um lado grupos civis focados na produção; e do outro lado, uma força policial estatal e privada em defesa da propriedade, contra a ação de uma população desesperada que ainda não encontrou um canal de viabilização de suas necessidades básicas.
Entretanto, uma nova forma de organização social de natureza solidária, sem a mediação pelo dinheiro, e de certa forma inconsciente e movida apenas pela necessidade mais direta de satisfação de necessidades básicas, está em gestação e se contrapõe à antiga ordem mercantil que entrou em colapso.
A criança nascida nessa manjedoura ainda carece de muitos cuidados e os percalços são enormes, mas já se vislumbra o raiar de um novo dia, e se admite a possibilidade dela crescer forte, saudável, solidária e sensível.
Só o futuro dirá sobre essa nova possibilidade. Oxalá surja daí um modus vivendi novo e verdadeiramente humano.
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