terça-feira, 9 de dezembro de 2014

ARTIGO DE APOLLO NATALI: "TIO SAM, TIO SAM, QUE MATAS OS TEUS NEGROS..."

No dia 5 de dezembro de 1955, o menino negro Emmett Till, de 14 anos, foi assassinado por dois brancos, acusado de ter se insinuado a uma mulher branca. Foi  surrado, levou um tiro de pistola .45, teve um olho arrancado e o pescoço amarrado com arame farpado a um peso para que afundasse no rio Tallahatchie. O assassinato aconteceu em Money, no Mississippi, onde mais de 500 casos de inchamento de negros haviam sido documentados desde 1882.

Naquele mesmo 5 de dezembro, Martin Lugher King foi eleito presidente da Associação pelo Progresso de Montgomery, uma pequena semente do movimento por direitos civis que varreria os Estados Unidos e teria Luther King como a principal liderança até o seu assassinato em Memphis, no ano de 1968.  

Rosa Louise Parks fez a introdução ao discurso de Luther King como presidente da  instituição. Antes, a atitude de Rose Parks, de não ceder seu lugar a brancos no ônibus, havia sido a semente de movimentos por direitos civis por todo o país. Morreu no furacão Catrina.

Em 3 de maio de 1963, 6 mil crianças marcharam pela cidade de Birmingham, em lugar de milhares de manifestantes que haviam sido presos. A resposta da polícia veio com cassetetes, jatos de água e cachorros ferozes contra a turba infantil.  

Em agosto desse ano mais de 200 mil pessoas se reuniram em frente ao Memorial Lincoln, em homenagem a Abraham Lincoln, o indeciso presidente norte-americano que, enfim, um dia levou à frente a causa da abolição. Luther King disse então: Eu tenho um sonho. Eu tenho um sonho de que um dia esta nação experimentará o verdadeiro significado de sua crença, de que todos os homens são criados iguais.

Em 22 de setembro de 1862, Abraham Lincoln assinou a lei que vigoraria a partir de 1º de janeiro de 1863, intitulada Proclamação da Emancipação, que libertou o negro do cativeiro da escravidão física. 

Cem anos depois, no entanto, o negro nos Estados Unidos da América ainda não é livre, vive isolado numa ilha de pobreza em meio a um vasto oceano de prosperidade material, abandonado nos recantos da sociedade na América, exilado em sua própria terra. 

E vocês sabem, meus amigos, que chega a hora em que as pessoas se cansam de ser pisoteadas pelo pé de ferro da opressão. Chega a hora, meus amigos, em que as pessoas se cansam de ser lançadas no abismo da humilhação, onde vivenciam a desolação de um pungente desespero. Chega a hora em que as pessoas se cansam de ser alijadas do brilhante e vívido sol de julho e abandonadas ao frio cortante de um novembro alpino. Assinado, Martin Luther King (*).

Proclamamos com orgulho que ¾ da população mundial são formados por pessoas de cor. Nosso objetivo não deve ser derrotar ou humilhar o branco. Não devemos nos tornar vítimas de uma filosofia da supremacia negra. Deus não está interessado em libertar apenas o negro, o pardo e o amarelo, pois Deus está interessado em libertar toda a raça humana. 
Luther King discursa na Marcha sobre Washington (1963)

Devemos agir de maneira tal a tornar possível a união de brancos e negros num alicerce de verdadeira harmonia de interesses e compreensão. Devemos buscar a integração com base no respeito mútuo. À medida que lutamos por justiça e liberdade temos a companhia cósmica. Cada homem, do negro mais grave ao branco mais agudo, é importante no teclado do Senhor.  Assinado, Martin Luther King

Atentado a bomba cometido pela Klux Klu Klan à igreja Batista em Birmingham, em 1954, matou quatro meninas negras durante um culto – Addie Mãe Collins, Carol Denise McNair , Cyntia Diane Wesley e Carole Robertson. A morte dessas meninas possivelmente conduzirá todo o nosso Sul da mais baixa estrada da desumanidade do homem à mais elevada estrada de paz e da fraternidade. Estas mortes trágicas possivelmente conduzirão a nossa nação de uma aristocracia da cor a uma aristocracia do caráter. 

Não devemos perder a fé em nossos irmãos brancos. De algum modo, precisamos acreditar que os mais desnorteados dentre eles podem aprender a respeitar a dignidade e o valor de cada personalidade humana. Cheguei à conclusão de que esta premiação, o Prêmio Nobel, que recebo em nome desse movimento, representa um profundo reconhecimento de que a não-violência é a resposta à crucial questão política e moral de nosso tempo – a necessidade de o homem transcender a opressão e a violência sem recorrer à violência e à opressão. Assinado, Martin Luther King.

Em 7 de março de 1965, seiscentos negros foram brutalmente atacados na cidade de Selma. A polícia estadual avançou sobre os manifestantes, espancou-os com chicotes e pisoteou-os com cavalos. Foi o chamado Domingo Sangrento.  No dia seguinte, Luther King fez apelo a lideres religiosos de toda a nação para que percorressem o mesmo caminho do Domingo Sangrento. Mais de mil padres, rabinos, freiras e pastores atenderam a seu apelo. 

A chuva nos deixou encharcados. Nossos corpos estão fatigados, nossos pés, doloridos. Nossos pés estão cansados, mas nossas almas, não - disse Luther King em seu discurso – nunca houve um momento na história americana mais digno e mais inspirador do que a peregrinação de religiosos e leigos de todas as raças e de todas as crenças que afluíram a Selma para enfrentar o perigo ao lado dos negros oprimidos.  

A segregação entre raças foi uma estratégia dos emergentes conservadores sulistas para dividir as massas e baratear a mão-de-obra. Era simples manter as massas de brancos pobres trabalhando por um salário de fome nos anos que se seguiram à Guerra Civil, pois, se os humildes trabalhadores rurais brancos ficassem insatisfeitos com os seus baixos salários, os poderosos fazendeiros simplesmente ameaçavam demiti-los e contratar, por um salário ainda menor, um ex-escravo. 

Segregaram o dinheiro sulista dos brancos pobres, segregaram os costumes sulistas dos brancos ricos, segregaram as igrejas sulistas do cristianismo, segregaram as mentes sulistas do senso de justiça, segregaram o negro de tudo o mais.  Assinado, historiador C. Vann Woodward.
O assassinato impune de Eric Garner

Perguntou Martin Luther King: por quanto tempo mais o preconceito cegará a visão do homem, escurecerá o seu entendimento, afastará a iluminada sabedoria do seu trono sagrado? Quando a justiça ferida, prostrada nas ruas de Selma, de Birmingham e de todas as comunidades do Sul, levantar-se-á da poeira da vergonha para reinar suprema entre os filhos dos homens? Quando a radiante estrela da esperança será arremessada contra o escuro seio dessa noite solitária, extraída das almas fatigadas pelos grilhões do medo e pelas algemas da morte? Por quanto tempo mais será a justiça sacrificada diante da tolerância da verdade?

Sim, quando? O cenário nos Estados Unidos atual ainda são os velhos protestos de negros por todo o país e a repressão dos brancos contra eles, como nos velhos tempos de Luther King. Ainda agora, nos meses finais de 2014, Michael Brown, 18 anos, foi morto a tiros pela polícia em Ferguson; Akair Gurley, 28 anos, a polícia  o matou com um tiro no peito na descida de uma escada em Brooklin; Eric Garner, 43 anos, asmático, obeso, desarmado, foi esganado por um policial em Nova Iorque. Este episódio, o mundo inteiro, pateticamente entristecido, assistiu pela televisão e redes sociais e viu que o ódio pelo negro na terra do Tio Sam ainda está vivo. 

Quanto à enorme quantidade de negros que os Estados Unidos enviaram para a morte no Vietnã, é uma das nossas maiores vergonhas. Assinado, Martin Luther King.

Grande parte da abrangente e poderosa mensagem de Luther King corre o risco de ser abandonada à medida que novas gerações entram em contato com ele apenas por meio da história e o vêem mais como um mito do que como um homem. A vida e a obra de Luther King ainda são relevantes para compreender a complexa realidade dos problemas atuais e se permitirmos que a riqueza de seu exemplo se apague, perderemos a oportunidade de continuar aprendendo com ele. Assinado, Edward Kennedy.


* todas as citações de Luther King foram extraídas do livro Um apelo à consciência – Os melhores discursos de Martin Luther King (Jorge Zahar Editor, 2006, 184 p.)

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