Há muito não via meu tio rico; acabo de saber que morreu em novembro. Viveu muito para quem esteve por um fio lá por 1975, 76.
Ele era muito grato ao meu pai por ter cumprido a sina de primogênito, indo trabalhar aos 11 anos de idade quando minha avó enviuvou.
Então, enquanto o mais velho se encerrava numa tecelagem escura e poeirenta, o mais novo pôde abrir seu caminho nos negócios.
Então, enquanto o mais velho se encerrava numa tecelagem escura e poeirenta, o mais novo pôde abrir seu caminho nos negócios.
Nos tempos de criança, era nas festas do meu tio que eu podia comer do bom e do melhor. Ele ainda não tinha um padrão muito elevado, mas vivia bem melhor do que nós.
Aí sucedeu o inesperado: descobriu que era traído e rejeitou a esposa. Houve quem recriminasse sua severidade e a família se dividiu. Orgulhoso, cortou relações com os que o criticaram e as esfriou com os que o apoiaram. Parece ter decidido que todo parente é serpente.
Em 1968, quando fazia movimento estudantil e andava muito pelo centro velho da cidade, às vezes o visitava na sua joalheria, mais para matar tempo enquanto esperava a hora de qualquer compromisso.
Na verdade, tratava-se mais de fachada; seu negócio principal era a agiotagem.
Decepcionei-me quando lhe perguntei algo sobre um livro de sua prateleira e ele confessou que não lera nenhum deles; tinha um acordo com a livraria, que o ia suprindo com os títulos mais atraentes e trocando-os regularmente. Queria causar boa impressão na clientela.
Os livros também eram fachada.
Discutíamos política, eu criticando os militares e ele dizendo que o importante era cuidar dos meus próprios interesses.
Seu maior desejo: abrir um pequeno banco. Alfineteei-o quando a ditadura (que ele justificava mais para me contradizer...) passou a estimular a concentração bancária, deixando seu sonho em cacos.
Durante minha clandestinidade, quando eu era um dos imortais da Oban (o apelido que demos aos cartazes de "procurado"), meu pai mandava insistentes recados de que, se eu quisesse, ele teria como providenciar uma viagem segura para o exterior.
Suponho que os fundos e contatos viriam desse meu tio, mas nunca toquei no assunto com um nem com o outro. Eram lembranças amargas demais para mim. [Só depois que escrevi meu livro passei a encarar com mais naturalidade essas reminiscências.]
Suponho que os fundos e contatos viriam desse meu tio, mas nunca toquei no assunto com um nem com o outro. Eram lembranças amargas demais para mim. [Só depois que escrevi meu livro passei a encarar com mais naturalidade essas reminiscências.]
Entrou de cabeça no milagre econômico, fazendo bons negócios na Bovespa mas quase morrendo de enfarte. Safenado, tornou-se empreendedor imobiliário. Ficou podre de rico e cada vez mais distanciado da parentela pobre.
Por seus filhos, soube que ajudara muito a ambos financeiramente, mas jogara-lhes isto na cara quando ousaram discordar dele em algo importante. Resultado: saíram também de sua vida, um após o outro e da mesmíssima maneira.
Fazia-me lembrar o Cidadão Kane, comprando tudo que queria e vivendo recluso, desconfiado e sem afeto. Exibia como troféu a entrevista que concedera a um caderno de Turismo, relatando uma viagem que fizera... rico coitado!
Quando meu pai estava nas últimas, em 2003, vinha visitá-lo praticamente todos os dias. Depois do enterro, desapareceu de novo --definitivamente. Nunca mais o vi.
Minha mãe deixou até de receber o cartão natalino habitual. Noutro dia, disse que queria ter notícias dele.
Coloquei o nome na busca do Google e o que apareceu foi um registro de inventário e partilha. Maneira estranha de ser informado da morte de um parente.
Como muitos que interiorizam os valores do sistema, tinha potencial para ser uma pessoa bem melhor. Perdeu tanto na sua corrida obsessiva atrás da riqueza que, quando a obteve, nada do que realmente conta lhe restara. Não sobrou nem mesmo um rosebud (*) que alguém tivesse curiosidade em decifrar.
* a última e misteriosa palavra dita pelo Cidadão Kane, cujo significado um jornalista tenta descobrir ao longo do filme.
Um comentário:
Por vezes eu acho que o capitalismo é como o demônio que martiriza a todos:
Aos investidores, que lhe vendem a alma, retribui tomando-lhes a vida, despindo-a de qualquer sentido.
Aos inconformados, que lutam contra ele, dá a depressão patológica e o título de "subversivo".
Aos que seguem apesar dele, batalhando diariamente para viver, cria dificuldades, transformando-os em uma massa bovina.
Estarrecido, eu me pergunto: "para quê? Para quem?". Mas continuo sendo tocado por uma força que me impele a acordar, trabalhar, comer e dormir...
Abraço,
Ivan
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