terça-feira, 20 de março de 2012

SEQUESTRADORES E TERRORISTAS DE ESTADO "NEM SEQUER FORAM JULGADOS"

Em sua coluna semanal na Folha de S. Paulo (vide aqui), o filósofo Vladimir Safatle, com dignidade exemplar, rebateu o editorial da véspera do próprio jornal da  ditabranda  sobre a punição dos torturadores.

Vale a pena reproduzir sua argumentação, até porque coincide com a opinião de muitos companheiros:
"Criticando a decisão do Ministério Público Federal em denunciar o coronel Sebastião Curió por sequestro de membros da guerrilha do Araguaia, o editorialista recorre à decisão do STF sobre os efeitos da Lei da Anistia. Ele ainda critica o 'raciocínio tortuoso' dos membros do Ministério Público que alegam que tais sequestros, perpetrados nos anos 70, não prescreveram, já que os corpos nunca foram encontrados.

Isso nada tem de 'peça de ficção'. Argumento similar foi usado no Chile, obrigando a Justiça a reabrir processos ligados a desaparecidos políticos. Tal argumento consiste em lembrar que militares sabem em que lugares tais corpos foram enterrados, tanto que dificultam sistematicamente toda investigação. Eles continuam, assim, cometendo crime de ocultação de cadáver ou de sequestro, pois tecnicamente tais sujeitos se encontram nas mãos do Exército.
Por outro lado, a decisão do STF é ilegal sob dois aspectos. Primeiro, há um conflito de soberania. O Brasil, ao reconhecer a existência do conceito de 'crime contra a humanidade', até aceitando a jurisprudência de um Tribunal Penal Internacional, abriu mão de parte de sua soberania jurídica em prol de uma ideia substantiva de universalidade de direitos.
Os acordos políticos nacionais não podem estar acima da defesa incondicional dos cidadãos contra Estados que torturam, sequestram, assassinam opositores, escondem cadáveres e estupram. Isso vale tanto no Brasil quanto em Cuba, na França ou em quaisquer outros lugares.
Vale ainda lembrar que a redação da Lei da Anistia em seu parágrafo dois é clara: 'Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal'.
Membros da luta armada envolvidos em sequestros e mortes não foram libertados, mas tiveram diminuição das penas. Os envolvidos em terrorismo de Estado e sequestro nem sequer foram julgados. O que demonstra que a anistia só valeu para um lado -aberração que o STF perpetuou.
É compreensível que o editorialista queira lutar para que o Brasil não vire prisioneiro de seu passado, alegando que tais fatos são 'página virada'. Mas há aqueles que acreditam que só nos livraremos do passado ao encararmos nossas piores páginas mais uma vez".
Filósofos analisam as questões apenas sob a ótica do que é certo e do que é errado, não levando em conta as chances que temos de fazer o que é certo prevalecer sobre o que é errado.

Então, embora idealmente o STF devesse mesmo permitir os processos contra os torturadores, eu simplesmente não levei em consideração algo que, na prática, não ocorrerá. Como jornalista, aprendi a considerar também as realidades concretas --como a de que o Supremo prefere e continuará preferindo a conveniência (para os que levam a sério os blefes e carrancas dos velhos gorilas) à Justiça.

Também é certo que a universalidade de direitos esteja acima dos acordos políticos nacionais, como a Lei da Anistia. Mas, nem o Governo Federal (representado pela Advocacia Geral da União) nem o Supremo admitirão isso, então para que perdermos tempo elocubrando sobre o sexo dos anjos?

Daí eu preferir pegar o touro pelos chifres, indo logo ao fulcro da questão: é a Lei da Anistia --viciada em sua origem por haver sido gestada em plena ditadura, com os parlamentares intimidados e a esquerda chantageada, em benefício dos mandantes e dos executores de crimes terríveis-- o grande obstáculo não só a que uma das aves de mau agouro seja processada, mas a que todas elas o sejam.

Então, se teremos de mover céus e terras para mudar a tendência hoje dominante, compensa mais o fazermos para obtermos uma solução no atacado do que no varejo.

Ou seja, não para abrirmos uma pequena brecha que permitirá à Justiça alcançar um ou outro criminoso, mas para removermos a couraça legal que a ditadura moldou para proteger todos os seus chefões e todas as suas bestas-feras.

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