Anjo da guarda ou anjo exterminador? |
Eu me lembro bem do meu tio Hélio. Trabalhava na marcenaria do Vovô, lixando e envernizando móveis.
Criança, eu era proibido de circular na fábrica propriamente dita, pois havia serras funcionando.
Mas, deixavam-me frequentar o salão do segundo andar, onde o Hélio e o Alaôr, empregado igualmente jovem, cuidavam do acabamento. Dava-me bem com ambos.
Como nossa memória tende a fixar apenas o fora do comum, os episódios que me lembro do Hélio foram das traquinagens que fiz com ele.
Como quando, vendo que o Hélio estava trancado no banheiro, fechei o trinco que havia do lado de fora. O Alaôr, naquele dia, não fora trabalhar, mas eu pensei que logo passaria alguém pela seção e o libertaria.
Não passou ninguém. Depois de uns vinte minutos, fui contemplar o resultado da minha obra. E não é que o Hélio continuava preso, tentando derrubar a porta a pontapés?!
Sem graça, perguntei: "Tem alguém aí?".
A resposta veio irada: "Você sabe muito bem que sim!". Além de uma enxurrada de palavrões.
Fui lá, destranquei a porta e saí correndo. Providencialmente: um chinelo passou voando ao meu lado...
Não vou encumpridar a história contando outras peraltices. Até porque esta crônica não é alegre: Hélio Vannucci morreu no final da década de 1960, com uma doença cerebral rara, deixando filho e filha pequeninos. Não tinha nem 30 anos.
Era um sofredor. Ainda criança, brincando com tesoura, vazara o próprio olho. Ficou complexado pelo resto da vida, julgando-se repulsivo para as moças e escondendo o defeito atrás de grossos óculos escuros.
[Aquele olho morto, com filões vermelhos, realmente me chocou um pouco no começo, mas depois me acostumei. Creio que acontecesse o mesmo com as outras pessoas.]
Casou mal, endeusando em demasia a moça prendada que finalmente o aceitara.
Eram três irmãos e uma irmã (minha mãe) trabalhando juntos na marcenaria do Vovô. Hélio, que era o caçula, pleiteava além da parte que lhe cabia, em desespero de causa.
A tendência do meu avô, homem bondoso, era sempre ceder. Mas, meus outros tios chiavam, recriminando o favoritismo.
Impossibilitado de conceder as mesmas regalias aos quatro, meu avô às vezes não atendia as súplicas do Hélio. Que então ouvia poucas e boas em casa.
Terá sido este o motivo de uma enfermidade cerebral tão precoce? Estaria a natureza oferecendo-lhe uma saída, já que tudo conspirava para sua infelicidade?
O certo é que teve o pior dos seus ataques num dos piores dias para se baixar num hospital: quando os titulares descansam e substitutos são laçados para manter aparência de funcionamento normal.
Os plantonistas, percebendo a gravidade do seu estado, preferiram passar a encrenca adiante: colocaram-no na respiração artificial, lavaram as mãos e foram aproveitar as diversões noturnas.
Igualmente se omitiram os plantonistas da noite, os do domingo, todos: deixaram como estava para ver como ficava.
Na segunda-feira ele já começava a exalar cheiro de cadáver. A família, desesperada, correu atrás de um grande especialista.
O qual disse que a melhor (praticamente única) chance do Hélio era ter sido operado no momento mesmo da internação.
Então, orientou: coloquem-no no pulmão mecânico e vejam se ainda consegue respirar por si mesmo. Ou vai expirar ou dará sinal de vida, possibilidade remotíssima. "No segundo caso", disse o luminar da medicina, "eu o operarei imediatamente".
Expirou. E eu, que tanto gostava (e tanta pena tinha) do Hélio, sempre considerei aqueles plantonistas omissos do fim de semana como assassinos.
Não cumpriram o juramento de Hipocrates, de lutar até o fim pela vida do paciente. Mas sim o de hipócritas.
Foi uma morte tão traumática que arrastou junto meu avô. O coitado ficou prostrado por remorsos, recriminando-se pelas vezes em que deixara de atender os pedidos de dinheiro extra do Hélio.
Tão deprimido andava que nem ligou para as dores que sentia no estômago. Levou meses para procurar o médico. Aí, o câncer já tinha avançado demais.
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