O jornalista e escritor Carlos Heitor Cony relembra na Folha Ilustrada suas seis prisões durante a ditadura militar e, lá pelas tantas, evoca a cordialidade entre adversários que ainda subsistia na segunda delas, exemplificada por esta reminiscência do Natal de 1968:
"...o comandante cujo nome não guardei, homem civilizado e gentil, surpreendeu a mim e ao Joel [Silveira] mandando vir, de sua casa, uma ceia completa, vinho, castanhas, fatias de peru, frutas, um cartão amável desejando não somente um feliz Natal mas uma rápida libertação".
Nas quatro prisões seguintes, entretanto, o clima mudou radicalmente:
"...ficamos conhecendo o outro lado daquela turma que nos prendia. Nem Joel nem eu fomos torturados, mas passávamos a noite ouvindo os gritos dos torturados. Na hora das refeições, antes de chegar a comida, chegavam dois tipos de homens diferentes, verdadeiros armários que apontavam as armas enquanto comíamos não a comida normal dos quartéis, mas uma pasta que parecia os restos de outras refeições.
Nenhum diálogo, apenas ameaças. Nem banho de sol, obrigatório pela Convenção de Genebra. Nem visitas, nenhum contato com o mundo exterior, nem mesmo com a família, que não sabia onde estávamos e se estávamos vivos".
Traçando um paralelo com a obra clássica de Robert Louis Stevenson, ele avalia que "a poção mágica do poder" transformou os militares, de médicos em monstros. Supostamente, a partir do AI-5, promulgado em dezembro/1968.
As minhas próprias lembranças me levam a considerar um tanto mecânica a análise de Cony.
Sequestrado (aquilo lá não respeitava os trâmites legais de uma detenção) em abril/1970, eu só deveria ter conhecido monstros. Mas, restavam alguns médicos.
E não só os bons recrutas que, compadecidos de nossa situação, arriscavam-se a severas punições para nos prestar pequenos favores e até davam um jeito de aumentar a quantidade de comida no bandejão que nos serviam, por perceberem que estávamos desnutridos.
E mesmo entre oficiais encontrávamos um pouco de solidariedade; com maior frequência quando se tratava de veteranos que tinham aprendido seu ofício em tempos menos bicudos. Para estes, honra militar não era uma expressão em desuso.
Quem passara pelos campos de batalha da 2ª Guerra Mundial, geralmente não via com bons olhos a brutalidade amoral dos novos capitães e tenentes, dispostos a tudo para conseguirem promoções e prêmios.
Davam a entender, contudo, que eram impotentes para evitar os excessos. A bestialidade viera para ficar. A velha guarda castellista torcia o nariz, mas era só o que podia fazer, pois perdera a parada nas disputas internas da caserna. A linha dura apertava cada vez mais o torniquete.
Quando foi relaxada a primeira das três prisões preventivas que me mantinham prisioneiro, transferiram-me do quartel da PE da Vila Militar, um dos piores que existiam, para o que, por contraste, pareceu-me um hotel: o Regimento Escola de Cavalaria.
TEMPO DE OGROS
Como companheiro de quarto -- não era exatamente uma cela, embora tivesse grades na janela --, um professor que não havia participado da luta armada mas, mesmo assim, levara choques tão terríveis na PE que tinha os ossos dos dedos à mostra.
Deduzi que ambos saíriamos em breve. Os militares se preocupavam com tais detalhes, como o de não despejar nas ruas pessoas que parecessem ter saído de um campo de concentração nazista. Representariam a prova viva do que sucedia nos porões. Então, costumavam recuperar um pouco os presos, fisica e psicologicamente, às vésperas da libertação.
Não fiquei agradecido pelo tratamento menos desumano. Refleti que os oficiais médicos estavam desempenhando um papel determinado pelos alto comando, da mesma forma que seus colegas do DOI-Codi esmeravam-se em representar ogros.
Como única ressalva, eu admitia que os oficiais se direcionassem para a Cavalaria exatamente por terem um perfil mais compassivo (tanto que gostavam de animais), ao passo que iam para a infantaria os naturalmente insensíveis; e os piores deles, para a Polícia do Exército. Então, em ambos os casos, aproveitara-se o physique du rôle.
Mas, houve um oficial que me pareceu ir além do script: o comandante do regimento, cel. Castro.
Em dezembro/1969, ss visitas a presos políticos na Vila Militar do Rio de Janeiro estavam todas suspensas em função do sequestro do embaixador suíço. Ele abriu uma exceção no Natal. Fiquei com a impressão de ter sido uma decisão pessoal, não uma encenação a mais.
O jeitão, a forma de falar, o tratamento respeitoso adotado com seus subalternos, tudo nele compunha a imagem de um homem afável e nobre, capaz de uma atitude dessas.
Ademais, como deveria estar bem próximo da reserva, já se encontrava imune a represálias. È quando os oficiais não temem tanto desagradar os escalões superiores.
Voltando ao dr. Jeckyll e Mr. Hide, faz mais sentido supor que, mesmo no pior momento do terrorismo de estado, as Forças Armadas continuasse tendo seus médicos e seus monstros .
E, principalmente, indivíduos comuns, que não eram uma coisa nem outra, mas perceberam que, naquele momento, seus interesses estariam melhor servidos se deixassem aflorar as componentes monstruosas de sua personalidade, pois era isto que deles se esperava.
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