Dois episódios atuais me trouxeram à lembrança um sarcástico filme italiano de quase duas décadas atrás: O Processo do Desejo (La Condanna, d. Marco Bellocchio, 1991).
Uma bela e distraída moça (Claire Nebout) passa despercebida aos funcionários de um museu, que o trancam no final do expediente sem se darem conta de sua presença.
Quando já se preparava para pernoitar da melhor maneira possível, aparece um arquiteto (Vittorio Mezzogiorno), que ela toma por também aprisionado no local.
As circunstâncias levam ao previsível desfecho: pinta aquele clima e acabam transando.
No dia seguinte, ao ficar sabendo que o arquiteto tinha a chave do museu, ela surta e o acusa de estupro.
Ou seja, a relação tinha sido consentida, mas ela se julgou vítima de um engodo: se não acreditasse que estava obrigada a passar várias horas no museu deserto, não teria cedido ao desejo. E a Justiça, como num enredo kafkiano, lhe dá razão.
Na mesma linha, há dois casos no noticiário em que a Lei briga com o desejo.
Uma professora mantinha relação amorosa há seis meses com uma jovem aluna e está presa por isto.
Um internauta de 18 anos marcou encontro com outro de 13 num shopping, porque ambos trocaram mensagens e descobriram que tinham o mesmo desejo. Aí, beijaram-se em público e os tacanhos seguranças chamaram a polícia. O mais velho foi detido.
A Lei, ora a Lei!, está na contramão do senso comum: os quatro personagens envolvidos queriam fazer exatamente o que fizeram, não houve coação nem impulso de momento.
Queiramos ou não, a erotização se dá cada vez mais cedo no mundo atual, em que qualquer criança, de qualquer idade, compra o dvd que quiser no camelô e vai assistir em casa, na ausência dos pais.
Ainda na era do vhs, uma amiga me contou: chegando no apê em horário imprevisto, encontrou o filho de 12 anos, com amiguinhos da mesma idade, assistindo a uma fita de... sadomasoquismo! Conseguira retirá-la numa videolocadora.
Então, porque não estamos conseguindo atualizar as leis com a mesma velocidade das mudanças comportamentais, alguns pobres coitados acabam apanhados nessas armadilhas do destino, enquanto milhões fazem o mesmo sem serem punidos.
À falta de critério melhor, deveria prevalecer o óbvio: aquilo que as pessoas querem fazer e não causará mal irreparável a nenhuma delas, que o façam, arcando com as consequências, eventualmente quebrando a cara e aprendendo por si próprias quais os limites que lhes convêm. Nossa sociedade injusta e farisaica não tem autoridade moral nenhuma para lhes ditar regras.
Também aqui convém lembrarmos a frase célebre de Marx: "quem educa os educadores?". Geralmente, os que se propõem a tutelar a liberdade alheia são piores, bem piores, do que aqueles a quem pretendem impor tutela.
3 comentários:
Celso,
Sei que este comentário está meio atrasado, mas não posso deixar passar...
Acho que o tema é um tanto mais delicado do que o quadro pintado.
Um(a) professor(a) que se relaciona com um(a) aluno(a) se aproveita de uma posição de poder. Não é uma relação amorosa que começa com uma relação entre iguais. É como um padre que se aproveita do fascínio que sua posição cria para transar com as carolas.
O professor não está lá para isso. Está lá para educar. Se, no processo, ele seduz alguém, está fazendo errado.
Quanto à pessoa de 18 anos que fica com uma de 13, serei sempre contra. Dificilmente um adolescente de 13 anos tem estrutura para discernir uma paixão de um abuso. E será muito mais traumático de se recuperar do último.
Dito isso, duvido que os seguranças se meteram por causa da diferença de idade. É muito mais provável que seu moralismo tenha sido atacado pela imagem de duas pessoas (pelo que eu entendi) do mesmo sexo se beijando em público.
A adolescência é a época da curiosidade do sexo. É normal que haja interesse e experimentações nessa idade. Se for com outro adolescente, numa relação consensual, tudo bem. Mas os adultos tem que ficar de fora dessa.
O adulto que quer experimentar e gozar de diferentes sensações eróticas, que vá procurar outro adulto! Deve ser muito mais divertido, inclusive...
Grande abraço!
Ivan
Meu caro Ivan,
Freud me ensinou a ver os púberes com outros olhos, sem a aura angelical que os vitorianos neles queriam encaixar meio na marra.
E isto se dá mais ainda na sociedade atual, tão erotizada.
Então, tudo que você diz a respeito desses adolescentes, na minha opinião só se aplica aos impuberes.
Tenho boa memória: lembro-me que, aos 13 anos, eu sabia muito bem o que queria e o que não queria fazer.
Meus colegas e amigos da mesma idade, idem.
Francamente, não acho justo nem sensato que a infeliz professora e o internauta assanhado paguem tributo ao moralismo rançoso de vetustas eras.
Por sinal, as duas supostas vítimas tiveram comportamento digno. "Beijei porque quis", disse o menino de 13 anos.
Um forte abraço!
Celso, concordo inteiramente com você.
Essa história de achar que um adolescente (ADOLESCENTE, NÃO UMA CRIANÇA, QUE FIQUE BEM CLARO!!!) é um ser assexuado e assemelhado aos anjos é pura balela.
Puro moralismo barato.
Eu também me lembro muito bem o quanto eu já era safadinho na puberdade.
Isso, claro, em nada justifica abuso de qualquer espécie seja qual for a idade (ou a diferença de), pois até numa relação entre adultos pode haver abuso - um chefe que "obrigue" uma funcionária a manter relações é também um abuso.
Mas uma relação consensual entre duas pessoas jamais poderia ser assunto de polícia.
A nossa hipócrita sociedade se choca mais com um beijo entre dois jovens do mesmo sexo do que com a corrupção e o descaso que causam a morte de centenas nas "tragédias naturais" de todo começo de ano.
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