Carlos Heitor Cony escreveu um grande livro em 1974: Pilatos.
Ele tentara sinceramente contribuir para a revolução brasileira. Como resultado, caiu em desgraça com o sistema, incluindo os poderosos da mídia.
As pessoas de esquerda que antes o estimulavam a travar a luta justa, não demonstraram o mínimo interesse em suas agruras, deixando que se virasse sozinho na rua da amargura.
Quem lhe ofereceu um salva-vidas foi um antípoda ideológico: Adolpho Bloch. Direitista até a medula, empregou Cony por solidariedade de judeu para com judeu. E deve ter ficado satisfeito, pois confiou-lhe até a posição de seu ghost writer.
A reação do Cony à derrota dos seus melhores ideais, ao abandono a que foi relegado pelos companheiros e à frustração de ver os brasileiros tão eufóricos com o milagre econômico quanto indiferentes ao massacre dos militantes revolucionários, veio na forma desse livro perturbador.
Pilatos mostra um Brasil em que todos os personagens buscam apenas satisfazer as necessidades e impulsos primários. Não há nenhum sentimento nobre. Idealismo, solidariedade, compaixão, afeto, dignidade, tudo isso caiu em desuso. Cada um cuida de si e tenta levar vantagem sobre os outros.
O título foi inspirado num trecho do "Samba Erudito", de Paulo Vanzolini: "Aí me curvei/ Ante a força dos fatos/ Lavei minhas mãos/ Como Pôncio Pilatos".
Ou seja, Cony jogou na cara dos brasileiros: "Já que vocês não quiseram viver num país de verdade, então chafurdem nessa lama". Pois era o Brasil do milagre que ele estava, com lentes distorcidas, retratando.
Tudo isso me veio à lembrança face à reação da nossa esquerda diante da gravíssima fala de um ministro do Governo Lula enaltecendo a ditadura de 1964/85 e da mais grave ainda participação da Advocacia Geral da União num processo contra o torturador Brilhante Ustra, não só assumindo sua defesa como fincando posição no sentido de que as atrocidades cometidas pelo regime militar teriam sido mesmo arquivadas pela Lei de Anistia.
Quando o Governo Lula passa como um rolo compressor sobre valores sagrados da esquerda, como o instituto do asilo político, a opção pelas soluções negociadas nas greves de fome com inspiração idealista, a integridade dos habeas corpus, a restrição das Forças Armadas a suas missões constitucionais e o caráter tirânico e genocida do regime militar, aquela banda de música geralmente estridente, mas que depende dos mecenas planaltinos, emudece.
Entre os princípios que lhe cabe defender como herdeira de uma tradição secular e as conveniências da politicalha sórdida, a opção é sempre pela segunda.
Assim, mais uma heresia será consentida. Brilhante Ustra, até ontem, era um dos piores vilãos que a esquerda queria ver encarcerados. Hoje é o acusado que a Advocacia Geral da União defende, sem que ninguém proteste. Amanhã, talvez, acabe se tornando o companheiro Brilhante Ustra, se isto convier ao PT.
Dá vontade de também lavar as mãos, como Pôncio Pilatos.
Mas, isto seria facilitar as coisas para os mercadores de ideais. Continuarei representando a pedra no sapato deles, a defender hoje tudo que eles pregavam ontem e convenientemente esqueceram.
Então, a minha música não será o Samba Erudito, mas sim a Let's Play That, do também superlativo Jards Macalé:
"Quando eu nasci
um anjo louco, muito louco,
veio ler a minha mão.
Não era um anjo barroco,
era um anjo muito louco, torto,
com asas de avião.
"Eis que esse anjo me disse,
apertando minha mão,
com um sorriso entre dentes:
vai, bicho, desafinar
o coro dos contentes,
vai, bicho, desafinar
o coro dos contentes."
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