"Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
...Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!..."
(Castro Alves, Navio negreiro)
Eu sou internacionalista desde criancinha. Ou, pelo menos, desde que comecei a formar opiniões sólidas, lá pelos 12, 13 anos.
Parece-me simplesmente idiota venerar chão, pedaço de terra separado de outras terras por fronteiras que se demarcaram como consequência de vitórias e derrotas nas batalhas. Sangue as encharcou no passado e, vira e mexe, volta a ser derramado sobre elas. Para quê? Que há de tão valioso em alguns quilômetros de terra, a ponto de justificar morticínios? Dou mais valor aos seres humanos do que a pedaços de chão.
Antes mesmo de ser revolucionário, não admitia que alguém pudesse ser feliz enquanto outros padeciam ao lado. Se fosse estadunidense ou europeu, eu me sentiria o tempo todo culpado por dispor de tanto enquanto os miseráveis da África não possuíam nada.
E minhas primeiras leituras históricas me mostraram que, sobre as divisões artificiais que a força e o vil metal estabelecem entre os que deveriam estar irmanados por sua condição humana, o que brotam são intermináveis conflitos, até os bárbaros marcharem sobre Roma de novo, fazendo ruir os impérios erguidos sobre a injustiça e a desigualdade.
Então, quando travei contato com o marxismo, não vacilei um instante em me alinhar com o internacionalismo revolucionário, execrando o socialismo num só país de Stalin e outros toscos desvirtuadores dos ideais marxistas.
Veio a globalização capitalista e só não viu quem não quis: a alternativa, mais do que nunca, só poderia ser a construção também em escala global de uma sociedade liberta da exploração do homem pelo homem, com a priorização do bem comum substituindo o primado do egoísmo e da ganância. Isto porque nenhum país consegue mais marchar isoladamente contra a corrente, é esmagado pelas armas ou exaurido pela penúria até não lhe sobrar nenhum alento para resistir aos donos do mundo.
Só não vê quem não quer: a última esperança da humanidade é a de que nas próximas décadas, em meio às convulsões de uma terrível depressão econômica e das catástrofes que decorrerão do aquecimento global, os seres humanos se unam para travar as batalhas da sobrevivência; e que, aqueles que (eventualmente!) sobreviverem, continuem unidos quando chegar o momento de reconstruir a sociedade.
Ah, ia esquecendo: estas elucubrações foram suscitadas pelo (e os versos da epígrafe escolhidos em função do) artigo dominical de Hélio Schwartsman, que reproduzo abaixo. (Celso Lungaretti)
VODU DO NACIONALISMO
Donald Trump, o Incorrigível, desatou mais uma polêmica ao instar donos de times de futebol americano a punir atletas que protestam contra o racismo durante a execução do hino dos EUA. O tiro saiu pela culatra, já que levou os próprios empresários a se juntarem aos jogadores nas manifestações. Qual é o respeito devido a símbolos nacionais como hinos e bandeiras?
Não há dúvida de que parte da população abraça o discurso da unidade nacional e se identifica genuinamente com esses símbolos. Muitos cantam o hino com verdadeira emoção e se sentem ultrajados ao ver alguém queimar o pavilhão nacional.
É também inegável que, num regime onde prevaleçam liberdades básicas, a adesão à ideia de nação, e todo o pacote de posicionamentos que vem com ela, não pode ser obrigatória. Aliás, é até saudável que seja de tempos em tempos questionada. Legislações que impeçam cidadãos de protestar contra seu país, inclusive queimando bandeiras, têm algo de inapelavelmente antidemocráticas.
Acho que daria para criar um índice de autoritarismo baseado na frequência e na severidade com que um país trata quem profana os símbolos nacionais. Até existem nações democráticas, como Áustria, Alemanha, França e Brasil, que conservam leis que exigem que os símbolos sejam tratados com respeito.
O que salta aos olhos, porém, é que praticamente todos os Estados autoritários contam com normas que punem os profanadores, muitas vezes com rigor. Na Arábia Saudita, o gesto pode ser interpretado como blasfêmia ao islã, o que dá pena de morte.
Esse é um campo em que o essencialismo corre solto. Por mais que eu tente entender os sentimentos patrióticos, não consigo levar muito a sério a ideia –que não fica a dever nada às legislações de bruxaria da Idade Média– de que um pedaço de pano deva ser protegido contra maus-tratos e outras formas de profanação. Acho que é o vodu do nacionalismo.
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