terça-feira, 16 de maio de 2017

UM MARCO DA RETOMADA DO MOVIMENTO ESTUDANTIL BRASILEIRO COMPLETA 10 ANOS: A OCUPAÇÃO DA REITORIA DA USP.

Já lá se vão 10 anos que o movimento estudantil voltou a marcar forte presença na sociedade brasileira, começando pela ocupação da reitoria da Universidade de São Paulo no dia 3 de maio de 2007, re-estréia de uma das práticas mais emblemáticas dos universitários de 1968.

Depois de manterem a ocupação durante 51 dias, os novos contestadores efetuaram a desocupação, vitoriosos, no dia 22 de junho, ao som do altaneiro hino revolucionário do Geraldo Vandré; aliás saíram, exatamente, "caminhando e cantando e seguindo a canção".


Foi quando, depois de visitar a ocupação, escrevi o texto abaixo, convicto de que os fios da História começavam a ser reatados, para a retomada dos movimentos de contestação no estágio em que eles pararam quando a assinatura do AI-5 arrojou o Brasil nas trevas do arbítrio total.


Após ter sido depositada na lixeira da História aquela bestial ditadura contra a qual os melhores seres humanos naturalmente se uniam, a acumulação de forças por parte dos que lutavam contra a desumanidade capitalista passou a ser bem mais lenta.


Mas, perceptível. Para quem tinha um mínimo de sensibilidade política, eram favas contadas que, mais dia, menos dia, uma enorme onda de protestos sacudiria o País. 


E em 2013 a onda chegou, apontando um caminho para o futuro e tornando instantaneamente ultrapassada a esquerda que trocara os ideais revolucionários por uma ilusão de poder, deixando-se cooptar e domesticar pelos inimigos de classe. 


Então, faço questão de lembrar como tudo (re)começou, publicando novamente um dos textos que mais me orgulho de haver escrito. Lancei-o no dia 31 de maio. Logo depois, o então governador José Serra capitulou, anunciando que reveria os quatro decretos autoritários repudiados pelos uspianos.

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POR DENTRO DA REITORIA OCUPADA
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A última segunda-feira de maio é ensolarada, uma exceção no invernal outono paulistano. As pessoas ao redor da reitoria da Universidade de São Paulo, ocupada pelos estudantes desde o dia 3, mostram aquela animação habitual de quem reencontra o calor e o céu azul, após vários dias frios e cinzentos.

Conversam, brincam, confraternizam. Há líderes de servidores públicos se revezando num alto-falante para instruir/entreter quem chegou adiantado à reunião da categoria que terá lugar ali mesmo, ao ar livre. Ninguém parece preocupar-se com uma invasão da Polícia Militar, para cumprir o mandado de reintegração de posse concedido pela Justiça.

Uma barricada de pneus diante da entrada é a vitrine da ocupação. De que realmente servirá, caso cheguem brutamontes bem treinados e equipados, que têm a violência como realidade cotidiana? Quase nada. Mas, os símbolos têm papel importante nas batalhas em que o grande objetivo estratégico é a conquista de corações e mentes.

Diante da única porta de entrada, alguns estudantes do esquema de segurança fazem a triagem dos visitantes. Basta ter uma carteirinha de aluno ou professor da USP para entrar sem problemas. Como não sou uma coisa nem outra, levo alguns minutos para convencê-los de que não vim brincar de 007.

Como credencial, apresento meu livro Náufrago da Utopia, que por acaso trago comigo. Agrada-lhes o caderno iconográfico, com muitas fotos do movimento estudantil de 1968. Meio convencidos de minhas boas intenções, deixam que eu vá parlamentar com a  Comissão de Comunicação  (ou rótulo que o valha). Acompanhado, por enquanto.

Lá decidem que eu posso circular à vontade pela reitoria ocupada, liberando meu cicerone/vigia para outras tarefas. Uns 15 estudantes rodeiam meia dúzia de computadores, uns digitando e os outros palpitando.

Cuidam de manter o blogue da ocupação no ar, de selecionar e imprimir textos que serão expostos nos quadros de avisos e paredes. E também de mandar mensagens de esclarecimento aos jornalistas que falam mal da ocupação. [Como se isso adiantasse. Tirando honrosas exceções, a imprensa se colocou contra os estudantes, às vezes dissimuladamente, outras da forma mais panfletária e caluniosa, como fez a Veja São Paulo, que os acusou de “vândalos”, “baderneiros” e “arruaceiros”.]

A diferença mais marcante em relação às ocupações antigas é, exatamente, o esquema de comunicação sofisticado da atual, incluindo TV por Internet e rádio livre. De resto, sinto-me como se tivesse entrado num túnel do tempo e desembarcado naquele mês de julho de 1968 em que a Faculdade de Filosofia da rua Maria Antônia (SP) esteve ocupada para servir como QG das iniciativas em apoio da Greve de Osasco, lançando a nova onda que (como agora) rapidamente se alastrou.

Os mesmos colchonetes espalhados por um salão em que repousam alguns sentinelas cansados, após a vigília da madrugada – período mais propício para uma operação policial, exigindo, portanto, cuidados redobrados (e muita disposição para enfrentar o frio).

Os mesmos jovens com roupas coloridas e brilho no olhar, convencidos de que estão fazendo História, embora alguns ainda sejam imberbes.
Os mesmos mosaicos de textos e imagens compondo um visual agradavelmente anárquico. [O pôster mais hilário é o do governador José Serra fazendo mira com um fuzil e os dizeres “José Serra, nada mais nos U.N.E.”. Que ingenuidade, deixar-se fotografar em pose tão incompatível com sua aura e seu passado!]

Sou capaz de apostar que, se fizesse uma  excursão  como a que estou fazendo, a reitorazinha teria chiliques, pois, à  anarquia criativa, deve preferir os ambientes burocratizados, assépticos e sem vida, a julgar pelo que revela nas entrevistas: faz musculação, esteira e escova nos cabelos, usa terninhos de estilo clássico, quer corrigir pálpebras e bochechas com cirurgia plástica.

Deuses, o que faz uma farmacêutica numa posição dessas? Serão esses os temas que uma reitora deve tratar na imprensa, quando sua universidade vive a maior crise das últimas décadas? [De quebra, é uma ingênua que, a mando ou com autorização do governador, pede reintegração de posse e depois paga o mico de ver o mandado judicial descumprido, já que os estudantes não engoliram o blefe e Serra teme as conseqüências desse presumível confronto sobre suas ambições políticas.]
Apesar de toda a grita demagógica dos direitistas empedernidos e dos cristãos-novos do reacionarismo, não há sinais visíveis de depredação ou vandalismo. Aliás, os estudantes criaram um sem-número de comissões, para cuidar de cada detalhe administrativo da ocupação, zelando pelo patrimônio público.

Até permitem que os faxineiros continuem cumprindo sua função de manter limpas as várias dependências, indiferentes ao perigo de que o  inimigo  possa infiltrar-se camuflado com macacões.

O que não funciona mesmo são os caixas eletrônicos de bancos, nos quais  foram colados avisos de “sem dinheiro”. Uma fração infinitesimal da usura consentida pela Justiça e abençoada pelo sistema foi detida. Vem-me à lembrança uma música de Sérgio Ricardo, ídolo dos universitários responsáveis pelas ocupações de quatro décadas atrás: “Os bancos e caixas-fortes/ que eram rocha, se quebraram/ e um rio de dinheiro correu”.

À saída, lanço um último olhar a esses jovens belos, brilhantes e idealistas, aparentemente tão frágeis, mas dispostos a enfrentar a tropa de choque da PM, se isso for necessário. Espero, torço para que não venha a ser.

Volto para o mundo real da desigualdade, da competição e da ganância, depois de um breve reencontro com o faz-de-conta revolucionário. Ciente de que há um longo caminho a percorrer até que os voluntários da utopia voltem a ser em número suficiente para tentarem ir além do faz-de-conta.
E, mesmo assim, esperançoso, pois um passo importante está sendo dado, com esse renascer do movimento estudantil que ora se delineia. É tudo de que precisamos, a renovação e oxigenação da esquerda, depois de tantas desilusões e defecções.

As pedras voltam a rolar. 

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