terça-feira, 4 de abril de 2017

A MILITARIZAÇÃO DAS NARRATIVAS E A ESCALADA DE INTOLERÂNCIA NA WEB

Por Celso Lungaretti
Quando o computador pessoal se disseminou, nós, os eternos otimistas, ficamos esperançosos com a possibilidade de cada internauta informar, interpretar e opinar, acreditando que ela levaria a um novo patamar o debate civilizado e a acumulação de conhecimentos. 

Que decepção! Nem de longe imaginávamos que, ao invés de uma era de ouro sob a égide de Aristóteles, estávamos é abrindo as portas para o martelar massacrante de mentiras até que passassem por verdades, à maneira do ministro da Propaganda nazista Joseph Goebbels. O fanatismo, a intolerância e os linchamentos virtuais atingiram patamares assombrosos!

Particularmente doloroso para mim foi verificar que o fenômeno atingiu também o campo da esquerda, como se constatou na última campanha presidencial, quando a candidata Marina Silva foi desconstruída por uma enxurrada de meias-verdades e completas mentiras (p. ex., a caracterização de uma sua apoiadora – mera herdeira de grandes empresários, educadora e filantropa que, no pleito anterior, dera a mesmíssima ajuda ao candidato petista à prefeitura paulistana – como se fosse uma maquiavélica banqueira). 

Embora eu tudo fizesse para restabelecer a verdade, inclusive destacando que o nome da fulana nem sequer aparecia entre as várias dezenas de dirigentes do tal grupo econômico listados nos seu organograma, os trombeteadores da mentira continuaram difundindo a invencionice oportunista por meio de autênticos rolos compressores, sem jamais me retrucarem porque sabiam muito bem que eu estava certo.
Partido do outro lado, lembro o festival de insultos e ameaças (até de morte!) que eu recebia quando estava na linha de frente da cruzada virtual em defesa de Cesare Battisti. 

O que, aliás, acaba de se repetir, embora em escala bem menor, com meu artigo indignado sobre as execuções de dois pequenos marginais em 2015 e de outro no mês passado, as três filmadas e expostas nas redes sociais, mostrando a chocante indiferença com que policiais militares de SP e RJ tiraram a vida de presos indefesos. 

Os comentaristas do site Congresso em Foco (vide aqui) não só apoiaram as execuções bestiais, como me fizeram as acusações mais baixas e gratuitas:
* "Tem que ser muito BANDIDO ou cúmplice deles pra escrever um texto de merda desse" 
* "Eu vejo ele [o jovem executado a sangue-frio] como uma grande porção de estrume, que deve ter aterrorizado pessoas ordeiras por anos e num azar - azar dele, sorte nossa - ficou SUPOSTAMENTE indefeso e passou para o inferno sem escalas. Excelente" 
* "Esse celso ai é viado, só pode" 
* "...poupar o inimigo em combate é um risco de vida, (...) qualquer país do mundo estaria premiando e honrando seus policiais e soldados, aqui nossos bandidos e terroristas são tidos como coitadinhos por uma classe politica igualmente criminosa. Bolsonaro é o mais sensato diante dos lunáticos da esquerda atualmente" 
* "...a minha dúvida é se ele [eu] escreveu isso antes ou depois do baseado" 
* "Viva! Que sejam absolvido mais mil vezes! Bandido bom é bandido MORTO! Se está com dó leva pra sua casa, só que esse aí só servirá para adubar o jardim!!! (...) Viva as PMs, derradeiras barreiras que nos separam do caos!"
Como se produzem pessoas que, em pleno século 21, ainda evidenciam tal barbárie mental?
.
"O NEGÓCIO DA MENTIRA FUNCIONA 
MUITO MELHOR QUE O DO JORNALISMO"
.
Uma interessante tentativa de explicação, em termos mais amplos, foi a de Demétrio Magnoli, no artigo Atores políticos descobriram o valor da internet sobre o sistema de crenças (vide íntegra aqui). Eis os trechos principais:
Por Demétrio Magnoli
"Grigory Potemkin, comandante na Guerra Russo-Turca (1768-1774) e amante eventual de Catarina, a Grande, atuou também na área da cenografia política, construindo as cidades potemkin: simulacros de povoados, feitos só de fachadas e habitantes felizes, incrustados em lugares de passagem das comitivas da czarina. Internet potemkin é uma definição apropriada para os espaços virtuais criados com a finalidade de insular usuários que desenvolveram intolerância ao ambiente cada vez mais tóxico da rede mundial.
...Notícias verdadeiras são produtos caros: exigem apuração, checagem, contextualização. Não custa nada inventar noticias falsas. Humanos deixam-se seduzir por fake news, que carregam os ingredientes do inusitado, do espantoso, da conspiração, e gostam de discursos odientos, que satisfazem necessidades oriundas da ansiedade, do medo, do rancor. A ação de um único provocador gera efeitos multiplicadores, envenenando redes sociais.
A economia da internet opera segundo regras quantitativas. A publicidade segue as curvas estatísticas de clicks e likes. Como explica [o especialista] Andrew Nachison, (...) referindo-se a plataformas controladas pelo Google ou o Facebook, 'quanto mais retornamos, mais eles fazem dinheiro –e o torneio da gritaria segue em frente'. Está lá, no texto [uma versão atualizada do projeto editorial] da Folha: 'Os algoritmos que garantem índices elevados de audiência para as multinacionais do oligopólio são os mesmos que alimentam o sectarismo e a propagação de inverdades'. O negócio da mentira funciona melhor que o do jornalismo.
A psicologia e a economia desvendam apenas parcialmente o fenômeno da degeneração em rede do discurso público, pois não tocam na sua fonte política: a militarização das narrativas. Atores políticos nacionais e transnacionais descobriram o valor da internet como arena de guerras pós-modernas no campo dos sistemas de crenças. A expressão guerrilha na internet aparece em formulações estratégicas de organizações jihadistas, movimentos nacionalistas, governos autoritários e partidos políticos.
Centros de comando dessas guerras virtuais foram estabelecidos pelo Estado Islâmico, pelo Kremlin de Putin, por correntes nativistas que orbitam ao redor de Trump, pelos movimentos nacional-islamistas acionados por Erdogan. No Brasil, a estratégia, empregada há anos pelo PT, é replicada pelo antipetismo histérico que busca um Trump nativo.
A complexidade assusta, atemoriza, paralisa. Os generais da militarização das narrativas entenderam a força persuasiva da simplificação. As narrativas militarizadas são sentenças primitivas, isentas de nuances, manufaturadas como binômios identitários: nós contra eles. O mecanismo que garante sua difusão em rede é constituído por softwares e robôs. O usuário de redes sociais que reproduz impulsivamente as fake news opera, sem saber, como auxiliar desses canhões da guerra cibernética".

Nenhum comentário:

Related Posts with Thumbnails