segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

UMA VISÃO DIDÁTICA E INDIGNADA DO COLONIALISMO: "QUEIMADA".

Queimada (Burn!, 1969) é a obra máxima do cineasta italiano Gillo Pontecorvo e um dos mais perfeitos filmes políticos até hoje realizados, por ter a dosagem certa de reconstituição histórica, análise crítica e repúdio às injustiças sociais.

Também se trata, na minha opinião, de um dos ápices da carreira do grande Marlon Brando, no papel de William Walker, um agente do colonialismo que por duas vezes determina o destino de uma ilha dedicada à monocultura açucareira: 
  • primeiramente, ele fabrica um líder revolucionário para servir de espantalho, visando convencer os poderosos locais de que, se não agirem logo contra o governo colonial português, as massas tomarão a dianteira; 
  • depois, quando o antigo títere encarna bem demais seu papel e encabeça uma guerrilha contra a nascente e decepcionante democracia subjugada aos interesses econômicos britânicos, Walker comanda uma repressão impiedosa.
Face à constatação de que só conseguirá vencer incendiando as matas onde os rebeldes se refugiam, o que vai inviabilizar a produção de açúcar por décadas, Walker não hesita: a prioridade é evitar que a revolta se espalhe por outras ilhas semelhantes a Queimada. Portanto, quaisquer que sejam os prejuízos imediatos, tem de ser extirpada a ferro e fogo.

Por último, eis alguns trechos de uma entrevista que Pontecorvo (1919-2006) concedeu em 2003 ao crítico Luiz Zanin, de O Estado de S. Paulo. Mais precisamente, aqueles em que comenta seus dois principais filmes, Queimada e Batalha de Argel (La battaglia di Algeri, 1966, sobre o movimento guerrilheiro que foi o estopim da luta pela independência da Argélia).

Estado – Batalha de Argel parece tão natural quanto um documentário bem filmado. Mesmo os atores guardam uma espontaneidade difícil de encontrar entre profissionais.
Pontecorvo – Em Batalha de Argel trabalhei com o que chamo de  ditadura da verdade. Tudo que não parecia verdadeiro era imediatamente descartado. Os atores são gente do povo, argelinos interpretando os próprios papéis, com exceção do coronel francês, um ator profissional. Quando terminei o filme, sugeriram que eu deveria colocar um aviso dizendo que não havia utilizado uma única cena tirada de cinejornais. Foi o maior elogio que recebi. Filmamos muitas vezes imitando os cinejornais, com textura granulada. Sugeri ao meu fotógrafo o uso de um negativo que simulasse esse efeito. Queria cenas de cinejornal, granuladas, mas não medíocres como elas costumam ser.

Estado –  Queimada é em cores, com visual muito elaborado. Por que a diferença?
Pontecorvo – Com meu roteirista, Franco Solinas, quisemos fazer Queimada com estética muito próxima a um romance dos anos 1800, mas com conteúdo político. Um grande romance político. Gastamos seis meses estudando a situação colonial daquela época e cuidamos de todos os detalhes para que o filme tivesse verossimilhança histórica.
Estado – Mesmo que a ilha fosse fictícia…
Pontecorvo – Foi um recurso para falar do processo colonial de uma maneira mais ampla e não circunscrita a um ou outro país.

Estado – Como colocou um ator como Marlon Brando para contracenar com um amador como Evaristo Márquez, o líder revolucionário de Queimada?
Pontecorvo – Eu estava procurando atores em Cartagena, na Colômbia, e vi um homem que parecia ideal para o papel. Mas ele sumiu. Por obra do acaso fui reencontrá-lo em sua aldeia, com menos de 40 casas e onde não havia luz elétrica. Convidei-o para trabalhar com o maior ator do mundo, Marlon Brando. E Brando foi muito generoso com ele, ajudando-o nas cenas mais difíceis.

Estado – Lembra de alguma?
Pontecorvo – Eu precisava de um olhar irônico de Márquez, quando ele quer mostrar a Brando que percebeu toda a jogada em que foi metido. Mas Márquez nem sabia o que era esse tal de olhar irônico. A solução foi filmá-lo de cima para baixo e recomendar ao fotógrafo um certo ângulo, um brilho no olhar que sugerisse ironia. Deu certo. Brando morria de rir e disse que Stanislavski teria se revirado na tumba com essa técnica.

Estado – É verdade que o sr. brigou com Marlon Brando nas filmagens?
Pontecorvo – Um dia ele esqueceu os diálogos e fiquei enfurecido. Perguntei como isso podia acontecer a um ator como ele. Ele se sentou e disse: “Gillo, já fiz um monte de filmes, mas ainda fico nervoso a cada vez que uma câmera me focaliza”. Em seguida, recitou todo o diálogo, sem uma falha. Mas na frente da câmera, travava.

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