domingo, 27 de novembro de 2016

A ERA FIDEL

"Condenem-me. Não importa. 
A história me absolverá."
(Fidel Castro, ao ser julgado  
pelo assalto ao quartel 
de Moncada).
No mundo todo, os inconformados com a tirania do capitalismo (que mantém cerca de 80% da população mundial em situação de pobreza crônica) viram com esperança a primeira experiência marxista tradicional ser vitoriosa nas Américas, a partir da deposição revolucionária do corrupto e submisso títere dos Estados Unidos, Fulgêncio Batista, pelos guerrilheiros do Movimento 26 de Julho (1), comandados por Fidel Castro, em janeiro de 1959.

Após a definição ideológica do governo de Fidel, houve uma tentativa de invasão estadunidense da Baía das Porcos, por meio dos contrarrevolucionários cubanos e mercenários latinos que financiou e armou; foi bravamente rechaçada pelo povo cubano, que conseguiu vencer a farsa. 

Os Estados Unidos não queriam passar recibo ao mundo de seu tradicional belicismo intervencionista, em ação num país que se revoltara contra o corrupto de carteirinha que lhes servia de aliado. Cuba era a ilha do turismo e da jogatina nos cassinos onde tudo terminava em corrupção, embalada pela maravilhosa salsa cubana, regada ao rum nacional e aos famosos charutos de fabricação local.

Tal ousadia às portas da Meca do capitalismo mundial quase desencadeou uma guerra nuclear, esquentando a guerra fria cujo contraponto era a União Soviética. A instalação de misseis soviéticos na ilha caribenha era uma resposta à instalação de mísseis estadunidenses na Turquia.

A tensão chegou a tal ponto que John Kennedy e Nikita Kruschev tiveram enorme dificuldade para evitar que os falcões de seus respectivos países iniciassem uma guerra nuclear cujos resultados seriam catastróficos para a humanidade.  
13 dias que abalaram o mundo

Tudo terminou com um acordo de retirada dos mísseis de Cuba e da Turquia (2), mais o compromisso de não invasão da ilha, o que significou um enorme constrangimento para o poder imperialista, que daí em diante passou a utilizar embargos financeiros, atentados e medidas diplomáticas para o combate a Fidel e seu governo.

O que os marxistas tradicionais não sabiam (por desconhecerem o Marx crítico dele mesmo) é que o regime de Fidel era tão capitalista quanto o imperialismo dos EUA, que tanto julgavam combater. 

Divergências havia apenas na forma política de organização do governo e na forma de extração de mais-valia, que, ao invés de ser feita por empresas privadas cubanas e estrangeiras, seria agora patrocinada (de patrão, mesmo!) pelo Estado dito comunista. Ignorava-se e ainda se ignora a mecânica autotélica da forma-valor que não permite distribuição equânime da riqueza abstrata.  

O heroísmo do povo cubano é uma lição deixada para a posteridade sobre o que um povo imbuído de sentimentos superiores de emancipação é capaz de fazer. Este é o maior legado deixado por Fidel Castro, Che Guevara, Camilo Cienfuegos, Raul Castro e tantos outros que lutaram e viram o sangue guerrilheiro jorrar em Sierra Maestra e nas ruas cubanas, enfrentando as barbaridades do exército regular para, ao final, derrotá-lo.   

Não se podem negar os ganhos de povo cubano, que tem os melhores índices de IDH quando comparados com os demais países caribenhos, com os centro-americanos, os americanos do sul e o México. Não se podem negar a vitalidade e capacidade dos atletas (majoritariamente) negros de Cuba, a conquistarem tantas medalhas olímpicas; nem os ganhos de sua etnia completamente alfabetizada, num país em que seus ancestrais foram alvo da escravização direta.  Não há como se deixar de aclamar Cuba como o país do preto Doutor, entre outros ganhos sociais. 
Aonde vai a Cuba de Raul Castro?

Mas há que se reconhecer o fato de ser uma economia de mercado, na qual todas as categorias capitalistas estão presentes (trabalho abstrato, dinheiro, mercadoria, mercado, capital, Estado, política, riqueza abstrata, enfim, tudo que se traduz na forma-valor), daí necessitar de uma inserção mercadológica; daí padecer também quando ocorre a debacle do capitalismo globalizado. 

Aliás, suas agruras aumentam em função da maior vulnerabilidade, pois é apenas uma pequena ilha que sofre com os embargos econômicos que lhe são oficialmente impostos pelos Estados Unidos e é alvo do preconceito capitalista de muitos outros países.       

As restrições à liberdade de opinião e de locomoção bem demonstram a fragilidade de um pequeno sistema capitalista de Estado que nunca abdicou da força e do arbítrio como formas de sustentação política contra o capitalismo liberal e que, em tempos de crise globalizada, tende a passar pelas dificuldades inerentes ao estágio do limite da capacidade de expansão aumentada da forma-valor, principalmente na periferia capitalista. Cuba socialista, que é uma das versões políticas do capitalismo, sofre as consequências da crise deste mesmo capitalismo do qual faz parte.    

A superação das relações sociais capitalistas não pode ter sucesso num único país, ainda que tenha extensão continental, como é o caso do Brasil, da China, da Rússia, dos Estados Unidos, da Austrália, etc.; e muito menos numa pequena ilha, uma vez que a produção de bens e serviços indispensáveis a uma cômoda e sustentável vida social mundial depende da interação transnacional de produção a partir das riquezas naturais existentes de formas diferenciadas em cada país. 

Muito do que temos aqui, certamente não haverá noutro lugar e vice-versa; somente com um sistema de trocas sem mensuração econômica poderemos satisfazer nossas necessidades de modo sustentável. Isto não significa, entretanto, que devamos abdicar das tentativas localizadas de vida fora do mercado como embrião do que virá.  
"Resultados" de hoje não são aqueles com que Che sonhava...

Uma produção de bens e serviços que não se baseie em mercado, mas num sistema de cooperação transnacional para a satisfação de necessidades, implica um novo conceito de vida e, consequentemente, a existência de uma estatura humana superior, solidária, contributiva, que em tudo difere daquilo que a lógica capitalista nos impõe. 

Conseguiremos alcançar tal estágio? Creio que sim, desde que amparados por conceitos teóricos que demonstrem o equívoco no que estamos incidindo; e que confronte a cruel realidade social (que cada vez mais se torna bárbara, por conta do anacronismo de uma forma de relação social que chegou ao seu ponto limite de saturação). A realidade se aproximando da teoria poderá gerar saídas antes inimagináveis (as tais janelas revolucionárias de que fala Celso Lungaretti). 

Tenho divergências conceituais profundas com o marxismo-leninismo cultuado por Fidel, ainda que consiga identificar nele boas intenções, o que não me impede de constatar seus equívocos fundamentais. Daí divergir de muitos dos conceitos de Fidel expressos em sucessivas frases e discursos, dentre as quais pinçamos as que abaixo citamos sucintamente e comentamos:
a) “Pátria ou morte, venceremos!”, com a qual passou a terminar os seus discursos, repetindo uma antiga frase da luta de independência cubana à colonização espanhola, capitaneada por José Marti. O conceito de pátria diverge do universalismo marxista do qual Fidel se dizia defensor;
O slogan caducou; é da etapa das revoluções burguesas.
b) “Socialismo ou morte! Marxismo-leninismo ou morte!”, sem compreender que o politicismo e o socialismo marxista-leninista jamais romperam com as categorias capitalistas. Portanto, talvez sem o saber, Fidel fazia a apologia do capitalismo, ainda que sob a forma de capitalismo de Estado; 
c) “Jamais me aposentarei da política, da revolução e das ideias que tenho. O poder é uma escravidão e eu sou seu escravo”. Esta frase é a que melhor explica as contradições conceituais e os equívocos de Fidel. Primeiramente a política enfeixa uma ideia conceitual sistêmica e de Estado que é contrarrevolucionária; em segundo lugar, quem pensa deve estar aberto às mudanças que o pensar proporciona, pois a inflexibilidade do pensar é a antítese do próprio pensar e, portanto, contrarrevolucionária; e por último, considero que todo poder é escravista e a escravidão é contrarrevolucionária. O despotismo escravista é a marca mais característica do poder.        
Fidel Castro é história pessoal e conceitual relevante, como personagem icônica do século XX, pelo exemplo que encerra. Estou convencido de que seus erros e acertos servirão para a compreensão do que se apresenta hoje em termos de futuro, principalmente quanto à natureza capitalista do regime socialista cubano e, consequentemente, sobre a necessidade de superarmos todas as categorias capitalistas que hoje, mais do que nunca, corroem a vida social. 

Requiescat in pace, Fidel, pois, apesar de tudo, como dizia Rui Barbosa, “maior que a tristeza de não haver vencido é a vergonha de não ter lutado.” (por Dalton Rosado)
  1. nome alusivo ao fracassado assalto ao quartel de Moncada, em 26 de julho de 1953, primeira ação guerrilheira de Fidel Castro.
  2. a dos mísseis soviéticos de Cuba, ostensiva; a dos misseis estadunidenses da Turquia, discreta. Os EUA faziam questão de posar de vitoriosos para fins propagandísticos, enquanto os soviéticos não se importavam com as aparências.

Um comentário:

Valmir disse...

Logo que li a noticia do passamento do Grande irmão cubano o que pensei foi em Leônidas, o espartano.
Esse sempre me intrigou. Porque os lideres de Sparta o abandonaram e não lhe deram os homens que pedia para enfrentar o persas de Xerxes que estavam às portas da cidade estado cheio de más intenções? Parece obvio agora: ninguém queria os persas, que não eram flor que se cheire, mas queriam ainda menos seu herói nacional que pelo que se vê hoje dos grandes heróis nacionais conseguia ser uma desgraça pior que o inimigo estrangeiro. Quando Leônidas cheio de bravura e coragem marchou com seus 300 para o sacrifício inevitável no vale das Termópilas quase dá pra ouvir o eco do suspiro de alivio do povo que ele comandava com mão de ferro própria dos heróis sem mácula...que seria glorificado eternamente como modelo de herói guerreiro, mas que todos preferiam morto e enterrado, que impondo aos conterrâneos todo seu heroísmo e gloria.

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