Uma música que me veio à mente nos últimos dias é "Começar de novo", um dos muitos frutos da parceria de Ivan Lins com o letrista Vítor Martins.
Eu sou assim, começo a cantarolar uma canção e depois percebo que havia um motivo para relembrá-la depois de tanto tempo.
Um exemplo meio anedótico: certa vez, num supermercado (detesto fazer compras!), o comentário com que minhas engrenagens inconscientes me brindaram foi "Irene", do Caetano Veloso, que eu curtira há não menos do que quatro décadas. Nem precisei pensar muito para me cair a ficha do porquê: "Eu quero ir, minha gente,/ eu não sou daqui,/ eu não tenho nada, nada,/ quero ver Irene dar sua risada!".
O meu enfado às vezes se manifesta de maneira pior: crise de bocejos. Sem dúvida, algo em mim se rebela quando faço o que preferiria não estar fazendo. E, por mais que a minha vontade consciente queira deter os bocejos, eles não cessam até eu me retirar do local.
Mas, o que tem a ver, afinal, "Começar de novo" com o hoje e agora?
Tudo. É uma canção de 1979, quando a ditadura estava esgotada, sendo obrigada a fazer concessões e já preparando sua saída do palco. Pode ter aparentado existência até 1985, mas verdadeiramente expirara. Era um cadáver insepulto à espera de seus coveiros.
E Vitor Martins foi extremamente feliz ao retratar nosso estado de ânimo naquele momento em que os temores e controles começavam a desmanchar no ar e sentíamos que a vida recomeçaria a fluir, depois da interminável hibernação. Mais experientes e sofridos, iríamos novamente tentar trazer nossos melhores sonhos para a realidade.
"Começar de novo
E contar comigo
Vai valer a pena
Ter amanhecido
Ter me rebelado
Ter me debatido
Ter me machucado
Ter sobrevivido
Ter virado a mesa
Ter me conhecido
Ter virado o barco
Ter me socorrido...
Sem as tuas garras
Sempre tão seguras
Sem o teu fantasma
Sem tua moldura
Sem tuas escoras
Sem o teu domínio
Sem tuas esporas
Sem o teu fascínio
Começar de novo
E contar comigo
Vai valer a pena
Já ter te esquecido"
Hoje a situação é parecida. Só que, depois de darmos um fim ao jugo da bestialidade boçal dos militares, agora é a vez de sepultarmos o jugo das ideias retrógradas que aprisionaram a esquerda no século passado e até agora nos têm impedido de irmos ao encontro do novo.
Nacional-desenvolvimentismo, culto à economia estatizada como se fosse a única opção em relação ao mercado todo-poderoso, autoritarismo & sectarismo, realpolitik & geopolítica, teoria da conspiração & maniqueísmo, hegemonia do principal partido e esmagamento ou cooptação dos demais, assassinato de reputações de preferência a discutir-se em profundidade as ideias dos adversários, infiltração sorrateira no poder ao invés de revoluções de verdade, propaganda política falaciosa e manipulatória, tudo isso são ectoplasmas que ainda incorporam numa esquerda sem ousadia nem imaginação, cada vez mais odiosa e odiada, que enfiou a cabeça na areia para não ver o tempo passar na janela e hoje ameaça incendiar o Brasil só para não assistir ao formidável enterro de sua última quimera.
Mas, mesmo assim e apesar de tudo, a História avançará. E logo estaremos começando de novo, talvez um pouco melancólicos por terem sido vãos nossos esforços para empurrarmos a pedra até o topo da montanha, mas convictos de que vai valer a pena ter sobrevivido. Pois, desta vez, paradoxalmente, teremos chances bem melhores de levar a bom termo a empreitada.
Em 1968 conseguimos derrubar, juntamente com as prateleiras, as estantes, as estátuas, as vidraças, as louças e os livros, também e principalmente um jeito vetusto/carcomido de se fazer política de esquerda. Era proibido proibir, enfim! Conseguíramos tornar-nos contemporâneos do nosso tempo, enfim!
Mas, depois que os guerreiros da utopia foram esmagados, saíram das tocas os guardiães da ortodoxia, que exumaram seus dinossauros de estimação e mesmerizaram as novas gerações, impingindo-lhes o velho como novo. E lá se foi mais meio século para o ralo!
Mas, depois que os guerreiros da utopia foram esmagados, saíram das tocas os guardiães da ortodoxia, que exumaram seus dinossauros de estimação e mesmerizaram as novas gerações, impingindo-lhes o velho como novo. E lá se foi mais meio século para o ralo!
Agora, contudo, a degringola por eles provocada foi tão terrível que, haja o que houver, podemos ter certeza de que essa velha esquerda não se levantará nunca mais. Vai valer a pena já ter te esquecido!
Cabe-nos forjar a nova, evitando escrupulosamente os erros e armadilhas que tanto descaracterizaram a atuação recente e tão profundamente desmoralizaram aqueles que neles incidiram.
E, claro, indo ao encontro da nossa gente onde ela está: nas escolas, nas ruas, campos, construções. Nunca, jamais, nos palácios do poder, pois, não nos iludamos, pertencem ao inimigo e viram do avesso a alma daqueles que cedem ao seu fascínio!!!
E, claro, indo ao encontro da nossa gente onde ela está: nas escolas, nas ruas, campos, construções. Nunca, jamais, nos palácios do poder, pois, não nos iludamos, pertencem ao inimigo e viram do avesso a alma daqueles que cedem ao seu fascínio!!!
3 comentários:
Ótimo texto!
E que bela lembrança! Começar de novo!
Identifiquei-me com o cantarolar e mais ainda com o bocejar.
Aquela porção de nós livre.
Que só é.
Que existe por trás da fachada do ego.
Aleluia! Você também é assim!
só tem um problema..vamos começar de novo até o juízo final, o fim dos tempos.
o Brasil é ingovernável...
Valmir,
Talvez nem exista mais o ente "Brasil" no futuro. Nisto vc tem razão, esta cada vez mais desgovernado.
No meu comentário refiro-me ao fat que também estou cantarolando e, as vezes, bocejo em situações entediantes.
Este que cantarola e boceja é o meu verdadeiro eu. O não utilitário. E que aflora de quando em vez.
Dou grande valor as dicas que eu mesmo me comunico.
E quando as conveniências permitem, atendo ao se conselho.
O Brasil pode nem começar de novo, mas eu posso, caso seja necessário.
Existe uma grande força em nosso interior e que quer o nosso bem.
As vezes cantarola, noutras boceja.
Escutemo-la.
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