Jornal mata gente?
Não estou me referindo àquela prática da Folha da Tarde (SP), de noticiar a morte de pessoas ainda vivas para favorecer as tramóias da repressão, durante a ditadura de 1964/85. Parafraseando o grande Leonard Cohen, everybody knows que isso aconteceu e eu não gosto de chover no molhado.
Refiro-me a assassinato, mesmo.
Bem, é difícil imaginarmos uma empresa jornalística atingindo alguém com... rotativas? as pesadas máquinas-de-escrever de outrora? o conservadorismo petrificado de seus diretores?
Mas, a imprensa tem uma arma mortal: a capacidade de destruir reputações. Que o digam aqueles pobres coitados da Escola Base, levados à falência e quase linchados porque a mídia trombeteou uma falsa acusação de pedofilia.
Então, um episódio na história da empresa Folha da Manhã, nos idos de 1967, justificaria uma interessante discussão em escolas de jornalismo e cursos de Direito: se alguém sofre um ataque cardíaco fulminante após ter sido alvo da sanha persecutória de uma empresa de comunicação, isto caracteriza homicídio culposo?
Ou, mais diretamente: os jornais do Grupo Folha e o então governador Abreu Sodré foram os responsáveis pela morte do diretor de trânsito Américo Fontenelle?
Que os leitores decidam.
COMPETENTE, MAS TRUCULENTO
A satanização do coronel Fontenelle pelo Grupo Folha antecedeu sua morte |
Ao mesmo tempo, inclusive por ter formação militar, era um atrabiliário ao colocar as medidas em prática, chegando a mandar os guardas esvaziarem os quatro pneus de quem estacionasse em locais proibidos e colarem no vidro do carro mensagens a respeito da infração cometida (as quais tinham de ser pacientemente removidas, pois bloqueavam a visão do motorista).
O governador Abreu Sodré o contratou a peso de ouro para pôr ordem no trânsito caótico e congestionado de São Paulo. Eis como o jornalista e radialista Afanásio Jazadji evocou sua atuação, no Repórter Diário:
“O Coronel Fontenelle montou sua equipe e começou a trabalhar, localizando o engarrafamento em São Paulo em dois pontos: 1 – estacionamento desordenado nas principais ruas; e 2 – carga e descarga o dia todo, durante 24 horas, impedindo os carros de se locomoverem.
Atacou logo os dois pontos com total sucesso, criando ‘bolsões’ e também ‘rotatórias’. Proibiu carga e descarga em toda a cidade, a não ser de meia-noite às 6 da manhã.
Suas medidas radicais colocaram o trânsito no seu devido lugar. (...) Suas medidas atingiram os maiores empresários do setor de transportes, que com caminhões congestionavam praticamente o dia inteiro a região do Mercado Central, espalhando a paralisação por todo o centro e bairros adjacentes.
Fontenelle mandava rebocar até mesmo o carro de vereadores e deputados que atravancavam tudo”.
A grita contra Fontenelle era tanta que ele teve de enfrentar a furibunda deputada Conceição Costa Neves num debate televisivo mediado por Aurélio Campos. Embora também tivesse pavio curto, fez esforços titânicos para conservar-se aparentemente calmo, limitando suas respostas às ofensas e grosserias da adversária a um comedido "isto, na sua opinião!".
Ganhou de goleada, segundo as rudimentares pesquisas de opinião da época: a virulência de Conceição se voltou contra ela, levando os telespectadores a simpatizarem com o cavalheirismo à moda antiga de Fontenelle.
A RODOVIÁRIA DA DISCÓRDIA
Menos sorte o coronel teve, entretanto, quando enfrentou o Grupo Folha de Octávio Frias e Carlos Caldeira.
Ocorre que outro negócio de Caldeira era a Rodoviária de São Paulo, absurdamente localizada bem no centro da cidade (av. Duque de Caxias) e foco dos maiores congestionamentos. O trabalho de Fontenelle não estaria completo se não extirpasse essa chaga. E, como contrapartida à personalidade despótica, ele tinha muito senso do dever e coragem pessoal.
Percebendo que, se anunciasse antecipadamente a desativação da rodoviária, seria tolhido pela politicalha, Fontenelle a executou nos moldes de uma operação militar, colhendo o inimigo de surpresa e criando um fato consumado: da noite de domingo para a manhã de segunda-feira, fechou a rodoviária e transferiu todos os ônibus, precariamente, para o Parque D. Pedro.
Foi vítima, como retaliação, de uma das mais tendenciosas e exageradas campanhas já desencadeadas por órgãos de imprensa contra um administrador público. Páginas e páginas eram utilizadas diariamente nos jornais do grupo para detonar o trabalho de Fontenelle e dar voz às suas vítimas (como os viajantes que perdiam o ônibus por desinformação).
Em nenhum momento aqueles veículos de imprensa tiveram a dignidade de informar aos leitores que estavam longe de ser parte isenta na questão, já que seus interesses haviam sido contrariados.
O governador Sodré, que não tinha a simpatia do Grupo Folha, de repente acertou os ponteiros com Caldeira e Frias: demitiu Fontenelle e passou a receber rasgados elogios nos jornais da empresa.
Pouco tempo depois, ao dar uma entrevista no programa Roleta Paulista, Fontenelle foi indagado a respeito de sua demissão. Em resposta, disse que iria falar tudo que até então silenciara sobre o comportamento desleal e indigno do governador.
De repente, parou, como se tivesse perdido o fio da meada. Fitou a câmara, seu olhar ficou esgazeado; cambaleou e, ao desabar no chão, já estava duro como pedra.
O pessoal do estúdio correu para socorrê-lo, a câmara tremeu, a transmissão foi interrompida. Logo depois, um locutor informou que o coronel tivera uma ligeira indisposição, mas passava bem.
Na verdade, estava agonizando. Morreu a caminho do pronto-socorro.
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