Reencontrei no Youtube a impactante música Charles, Anjo 45 praticamente recriada por Caetano Veloso, que a lançou em compacto simples com uma abordagem muito pessoal, em cadência lenta, bem diferente do sambão do Jorge Ben.
Ela havia sido um dos poucos destaques artísticos do esvaziado 4º Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo em 1969. O evento se desmoralizara no ano anterior ao premiar a bonitinha mas evasiva Sabiá porque o júri de poltrões teve medo de descontentar os militares no poder agraciando a franca favorita do público, Caminhando, do Geraldo Vandré.
Ademais, o Brasil entrara nas trevas do Ato Institucional nº 5 e os artistas responsáveis pelo apogeu da MPB entre 1965 e 1968 já haviam sido devidamente afastados, alguns do festival, outros do próprio país.
Do que sobrou, a vencedora foi a piegas e esquecível Cantiga para Luciana, de Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, que voou mais baixo ainda do que a Sabiá de Chico Buarque e Tom Jobim.
Em seguida foi lançado o compacto do Caetano, com Jorge Ben fazendo coro, que o influente crítico Tarik de Souza colocou nas alturas:
"Mais do que o próprio autor, Caetano Veloso soube compreender a força dramática e a intensidade de comunicação da extraordinária Charles, Anjo 45.
O painel surrealista da favela traçado pela letra forte de Jorge Ben funde-se à interpretação pausada de Caetano, somada ao ritmo cadenciado e às invenções vocais do compositor [Jorge Ben], que também participou da gravação".
Mas, afora os méritos artísticos, houve outro motivo para eu disponibilizar aqui tal canção: a ingenuidade da letra forte do Jorge Ben, saudando um mero chefão de favela como protetor dos fracos e dos oprimidos, Robin Hood dos morros, rei da malandragem, etc., e descrevendo de forma apoteótica as comemorações previstas para quando ele saísse da prisão.
Hoje sabemos quão ingênua era nossa visão desses bandidos, como se fossem alternativa à repressão da ditadura. Em 1968, p. ex., o artista plástico Hélio Oiticica chegou a colocar numa de suas obras a frase Seja marginal. Seja herói.
Vale ressalvar que os grandes bicheiros não eram criminosos tão terríveis quanto os traficantes que os sucederam como autoridades máximas dos morros, mas estavam muito longe de ser bonzinhos como a mitologia da esquerda os pintava.
Não me excluo dessa babaquice generalizada, mas desembarquei dela antes da maioria. É que a ditadura, para desmoralizar os presos políticos, resolveu colocá-los na companhia de presos comuns e os resultados foram catastróficos.
Na Ilha Grande, da convivência forçada resultaram lições valiosas para os marginais aprenderem a se organizar de forma profissional, fundando os comandos que até hoje impõem a lei do cão aos pobres favelados.
E em 1969, seis companheiros do Movimento de Ação Revolucionária fugiram do presídio Frei Caneca (RJ) juntamente com três marginais, que em seguida aderiram à guerrilha. Quando o primeiro dos marginais foi preso de novo, delatou rapidamente todos os militantes do MAR que pôde.
Ficamos sabendo disso tudo na VPR e concluímos que até poderíamos somar forças com os presos comuns em fugas, mas depois deveríamos separarmo-nos deles o quanto antes, porque não tinham os mesmos motivos que nós para resistirem às torturas.
A cultura do submundo brasileiro era (e é) de amoral promiscuidade entre policiais e bandidos. o que, aliás, foi bem mostrado no filme Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia, do Hector Babenco: os tiras, além de dar-lhes proteção, chegavam a sugerir os roubos mais promissores e a fornecer armas aos bandidos, para depois arrancarem deles parte substancial do butim. (por Celso Lungaretti)
3 comentários:
Uma lembrança: Quanto a Caminhando, do Geraldo Vandré, um dos jurados anotou no seu voto: LEFT. Desde aquela época conservo um disquinho compacto do Caminhando com um adesivo LEFT no selo. Lembro que foi até difícil encontrar o compacto
Nos sebos dava para encontrar esse e até um mais raro ainda: o do Caetano Veloso cantando "É Proibido Proibir" de um lado e, do outro, fazendo aquele discurso irado ("Ambiente de Festival") aos que o vaiavam.
Lembremos de tudo e mais...
Em 15 de Setembro de 1968 áudio do Caetano:
https://www.youtube.com/watch?v=KUtVVJacEZ4
transcrição
Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. Hoje não tem Fernando Pessoa. Eu hoje vim dizer aqui, que quem teve coragem de assumir a estrutura de festival, não com o medo que o senhor Chico de Assis pediu, mas com a coragem, quem teve essa coragem de assumir essa estrutura e fazê-la explodir foi Gilberto Gil e fui eu. Não foi ninguém, foi Gilberto Gil e fui eu! Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. E por falar nisso, viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido a dar esse viva aqui, não tem nada a ver com vocês. O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira. O Maranhão apresentou, este ano, uma música com arranjo de charleston. Sabem o que foi? Foi a Gabriela do ano passado, que ele não teve coragem de, no ano passado, apresentar por ser americana. Mas eu e Gil já abrimos o caminho. O que é que vocês querem? Eu vim aqui para acabar com isso! Eu quero dizer ao júri: me desclassifique. Eu não tenho nada a ver com isso. Nada a ver com isso. Gilberto Gil. Gilberto Gil está comigo, para nós acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil. Acabar com tudo isso de uma vez. Nós só entramos no festival pra isso. Não é Gil? Não fingimos. Não fingimos aqui que desconhecemos o que seja festival, não. Ninguém nunca me ouviu falar assim. Entendeu? Eu só queria dizer isso, baby. Sabe como é? Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês forem… se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos! Me desclassifiquem junto com o Gil! junto com ele, tá entendendo? E quanto a vocês… O júri é muito simpático, mas é incompetente. Deus está solto! Fora do tom, sem melodia. Como é júri? Não acertaram? Qualificaram a melodia de Gilberto Gil? Ficaram por fora. Gil fundiu a cuca de vocês, hein? É assim que eu quero ver.
Chega!
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