Há 200 anos o princípe herdeiro do trono português proclamava a independência do Brasil, a partir de um acordo com a elite agrária nacional.
O movimento tinha duplo objetivo: evitar a recondução do país à condição de mera colônia, após ter sido elevada a vice-reino por D. João VI; e impedir uma revolução popular com desfecho imprevisível.
Ainda pairava na mente dos escravocratas brasileiros as imagens dos latifundiários brancos pendurados e esquartejados no Haiti. As movimentações revolucionárias no resto da América hispânica também mostravam uma perspectiva nada animadora para quem buscava, acima de tudo, manter as coisas como estavam.
A saída natural foi cooptar o princípe mulherengo e trazê-lo para uma independência pelo topo, com o mínimo de mobilização militar.
A obsessão de não mobilizar o povo seria uma marca da história brasileira nos 200 anos seguintes. daí o Brasil ter adotado, sobretudo após a guerra contra o Paraguai (que terminou com o fim da escravidão e do Império), uma posição externamente pacifista, a ponto de Vargas postergar ao máximo sua entrada na 2ª Guerra Mundial. Tudo para não entregar armas nas mãos do povo.
Na prática, a independência não significou a mudança do papel brasileiro na ordem capitalista mundial. Tendo sido pensado desde 1500 enquanto exportador de produtos agrícolas para a europa, continou com tal função após o grito do Ipiranga, agora sem a mediação já esclerosada de Portugal.
Ou seja, não houve mudanças estruturais e econômicas no país depois da independência, continuando o Brasil em sua posição subalterna. Um mísero bônus? O acesso direto que passou a ter aos mercados europeus.
É unânime entre os historiadores que o período de 1822 a 1922 foi de estagnação. A estrutura agrária, juntamente com o trabalho escravo, fez o Brasil assumir uma característica estática.
Era como se o Império fosse um grande regime defensivo da classe dominante brasileira, agindo preventivamente contra toda mudança que pudesse ameaçar seu poder.
A partir da década de 1920, houve certo despertar da burguesia urbana brasileira. A grande guerra, a revolução russa e as transformações no mercado mundial impactaram o país a ponto de se iniciar um forte processo industrializante e urbanizador. A lógica expressa pelos movimentos desta época era de criar no Brasil uma sociedade burguesa moderna, avançada, ao mesmo nível dos EUA e da Europa. Havia, no entanto, dois caminhos para se seguir para isso: o nacionalista e o subalterno.
O primeiro foi expresso pelo varguismo e, mais tarde, pelos trabalhistas. Acreditava ser possível criar um capitalismo autenticamente nacional, com uma classe operária organizada e um novo patamar de desenvolvimento, fazendo imperar por aqui os mesmos modos de organização produtiva presentes no centro capitalista.
Para tanto, era necessário atacar a grande propriedade agrária improdutiva herdada ainda do período colonial; criar uma indústria completamente brasileira; fazer reformas urbanas e ampliar o acesso à educação, etc.
Grande parte da burguesia brasileira, no entanto, queria mais uma vez o caminho subalterno, como em 1822, temendo as consequências revolucionárias de mobilizar o povo. Desta vez não era o Haiti a povoar o imaginário da elite nacional, mas outro país caribenho, Cuba.
Para este grupo, o capitalismo brasileiro deveria ser associado aos países centrais, sem modificar fortemente a estrutura econômica interna e, muito menos, organizar a classe trabalhadora.
A disputa dos dois modelos marcou os embates entre os anos de 1945 e 1964, entre trabalhistas e liberais, terminando, como é sabido, tragicamente com a vitória dos últimos por meio do golpe de 1964. Ali ficou estabelecido definitivamente que o modelo burguês a dominar no Brasil seria o de subalternidade.
Como consequência, o Brasil ficou nas mãos dos capitalistas europeus e esdadunidenses. O resultado foi o parco desenvolvimento nacional, sangrado pelo envio de mais-valia para o exterior e o pouco retorno de investimento por aqui. O que já era ruim piorou quando ocorreu a reformulação produtiva da década de 1980, com a saída maciça de indústrias do país para o leste europeu.
Com isto, o Brasil retomou sua primarização econômica, com a base produtiva movendo-se para o setor agromineral. O desemprego, a estagnação social e econômica, o avanço de formas retrógradas de comportamento e vivência social se tornaram predominantes.
Daí vermos agora, no bicentenário, a faixa presidencial nos ombros de uma figura tão deprimente como Bolsonaro. Ao contrário de 100 anos atrás, não há qualquer otimismo quanto às possibilidades nacionais. É um país que não é o que poderia ter sido.
Por óbvio, o capitalismo é uma forma destrutiva e carrega em si o germe de sua própria destruição, o que é comprovado pela exaustão do modelo burguês mesmo no centro do sistema.
Contudo, em nenhum lugar o fracasso burguês é tão marcante quanto no Brasil, onde a miséria se alastra paralelamente ao fracasso da busca de soluções dentro do capitalismo, com a nossa classe dominante ora impondo formas ainda mais retrógradas de exploração do povo e do meio ambiente, numa clara posição destrutiva.
Mais do que nunca, hoje é marcada a alternativa brasileira entre o socialismo e a barbárie. O modelo burguês fracassou redondamente e os sonhos expressos no modernismo viraram a piada assassina de Bolsonaro e sua turma.
É hora de buscarmos um novo caminho para o país, pois. o atual nos leva ao que parece ser impossível: virmos a estar, no tricentenário da independência, lamentando uma derrocada ainda maior. Quem garante que já atingimos o fundo do poço? (por David Emanuel de Coelho)
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