sábado, 30 de julho de 2022

A FALTA QUE ELE NOS FAZ

A
História nem sempre faz justiça em vida a pessoas que por aqui passam e, sem alarde nem estrelismo, deixam marcas indeléveis em almas e mentes que com elas conviveram. Fui um privilegiado por ter bebido na fonte de sabedoria que foi Apollo Natali e tive tempo de agradecer-lhe pessoalmente. 

Lá se vão exatos 50 anos do primeiro gesto de gratidão, quando aquele rapaz espigado, boa pinta, de sotaque italianado, bancou minha chegada ao então maior grupo de comunicação do país. Ele não precisou mais do que uma breve apresentação verbal do amigo comum, o jornalista Renato Sant’Ana, conterrâneo de juventude no interior.

Como ele saberia que não iria correr o risco de prejudicar seu emprego ao apostar em um caipira recém-chegado à metrópole? Pois fiz-lhe essa pergunta muitos anos depois. Ele respondeu, com a honestidade dos simples: "Eu não sei, mas confio na minha intuição". 

Acabamos confidentes e pude conhecer o lado pessoal do Apollo, que ele revelava para restrito círculo de amizades. Me despertavam a curiosidade algumas facetas da vida dele. P. ex., o fato de, sendo um rapaz inteligente, garboso e galante, nunca tê-lo visto com namoradas, embora não faltassem pretendentes.
Dia de formatura:
sonho realizado.
Então disse-me que, mesmo acalentando sonhos, não poderia comprometer-se com nenhuma porque, antes disso, vinham a mãe o pai, bem idosos, que precisavam de seus cuidados. Na verdade, o Apollo era ume espécie de arrimo da família e agregados. Um abnegado, que literalmente abriu mão de seus interesses pessoais. 

Mas, nunca ninguém testemunhou atitudes de coitadíssimo ou vitimismo por causa dessas circunstâncias. Pelo contrário, se e quando podia, era visto aconselhando, incentivando e ajudando a quem o procurasse. 

O binômio que impulsionava sua vida era família e trabalho. Dedicado, mesmo tendo sido injustiçado durante anos por não terem-lhe reconhecido com o registro em carteira, ainda assim o Apollo não usava isso como subterfúgio ou argumento para fazer corpo mole.  

Era doente pela profissão, tanto que, já fora das redações, aos 71 foi fazer o curso de jornalismo. Não precisava, mas cumpriu o que vinha dizendo quando já era jornalista por direito. 
"Se um dia eu puder, vou entrar numa faculdade de jornalismo só para ver o que é que estão ensinando para a meninada"
Depois de tirar notas máximas em Jornalismo Online, ficou ídolo na sala. 

A agilidade mental do Apollo era algo incomum.  Na redação da Agencia Estado, da qual era subsecretário, lia os textos do telex e, quando terminava, já sabia quantas linhas tinha. 

Numa prova de Estatística na faculdade a professora permitiu que os alunos usassem calculadora. Embora não precisasse, o Apollo comprou uma. Quem conta o resto   é o Moacyr Castro, que foi chefe de reportagem do Estadão
"O Apollo abriu a caixa com a calculadora na hora da prova e começou a ler o manual de instrução. A professora pensou que ele estivesse colando. Tomou a calculadora dele e ameaçou: 'Quero ver você se virar sem colar!!!' Tirou 9,5 fazendo tudo de cabeça. Os alunos chegaram a sugerir à professora que pedisse demissão".
A sede antiga do Estadão, onde ele
fez a maior parte de sua carreira
Era espirituoso, rápido nas respostas. Quando, por exemplo, chegava a informação de acidentes aéreos, a primeira observação que ele fazia era relacionada ao número de passageiros
"a bordo" do avião. "Ora, mas queriam que eles estivessem na asa?!"

Solidário, quando o repórter Milton José de Oliveira esteve gravemente doente, ele convidou o editor Luiz Carlos Ramos e foram visitar o amigo em Bragança Paulista. "A vida do Apollo por si só já é uma história", dizia o amigo Wanderlei Midei, que partiu este ano.  

Entre as muitas facetas do Apollo há uma que não pode ser varrida para debaixo do tapete da hipocrisia quando se julgam circunstâncias e o caráter das pessoas sem que as conheçamos de fato. 

Alguns colegas na redação do Estadão, poucos, é verdade, faziam caras e bocas quando solicitados a ceder cópia de suas matérias que, por terem repercussão nacional, também seriam de interesse dos clientes da AE. 

Embora fosse política da empresa, era uma situação constrangedora porque os colegas se sentiam explorados. E tinham razão. Então, para compensá-los, o próprio Apollo encontrou a solução: incluiu-os como colaboradores remunerados do Serviço Especial que ele editava e era comprado pela maioria dos assinantes da AE. 

Talvez tenha sido Mauro Martins Bastos, que também começou pela AE e por um tempo tocou aquele Serviço Especial, quem melhor definiu o perfil do Apollo: 
"Uma figura íntegra, jornalista sem concessões. Sua pauta permanente era a indignação a serviço da sua imensa capacidade de trabalho. Pagou um preço por isso"
Eu acrescentaria, com o aval do inoxidável tricolor José Aquino: carismático!
 .
(por Daniel Pereira, que foi colega do Apollo Natali na
Agência Estado e está escrevendo um capítulo sobre ele
para um projeto de preservação da memória de
jornalistas que tiveram trajetórias 
marcantes na casa)
Obs.: este domingo, 31, é o quarto aniversário da morte do Apollo. Leia aqui um apanhado de sua trajetória, com links para várias de suas principais crônicas. 

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