quinta-feira, 2 de junho de 2022

ROSA DA FONSECA (1949-2022): A GUERREIRA DA LIBERDADE

Corria a ano de 1970 e eu acabava de chegar a Fortaleza para cursar a Faculdade de Direito. 

Com pouca grana no bolso, sem parentes importantes e vindo do interior, eu era o típico rapaz latino-americano, como cantávamos aos som do violão de Belchior e Jorge Mello, na cantina que era ponto de encontro dos talentos daquele grupo que viria ser conhecido nacionalmente como o Pessoal do Ceará

Era na Faculdade de Direito que eu absorvia a efervescência cultural e revolucionária da época. Tudo era novo e encantador para mim. 

Aquele grupo nada me perguntava sobre meu nome de família, as minhas posses, se eu tinha carro, etc. A comida era boa e barata no restaurante universitário, uma extensão do ambiente da faculdade. 

E por lá havia uma Rosa. 

Quase da minha idade (apenas um ano jovem há mais tempo), impressionava-me como ela sabia das coisas; como tinha coragem, em pleno terrorismo de estado da era Médici. E eu me perguntava de onde vinha aquela consciência e aquela força de uma moça tão jovem quanto aguerrida?   

Na minha ingenuidade de jovem do interior, queria conhecer o motivo daqueles gestos tão carinhosos para comigo, mesmo sem saber quem eu era, ao mesmo tempo que negava e repelia os poderosos, expondo-se corajosamente aos riscos da repressão assassina cujos espiões assistiam às aulas disfarçados de alunos. 

Depois veio a notícia de que Rosa havia sido presa, bem no olho do furacão que devastava o Brasil:
— os movimentos sociais eram perseguidos e calados; 
 os DCE’s, banidos (o da Faculdade de Direito virou Associação Atlética); 
 muitos revolucionários estavam sendo assassinados; 
 o ilusório milagre brasileiro levava os que raciocinavam pelo bolso a aplaudirem os ditadores (eram os tempos do ame-o ou deixe-o, que parecem redivivos); 
 o Brasil era tricampeão de futebol com um futebol impecável (mas politicamente omisso); 
 os militares consideravam-se os grandes vitoriosos. 

Mas o milagre era tão falso como uma bijuteria de quinta categoria presenteada numa noite de perfume barato e sobrevivência prostituída.       
O Sítio Brotando a Emancipação é um
projeto pelo qual tinha enorme carinho
ALEGRIA E ESPERANÇA:
 ROSA SAI DA PRISÃO

Começa então a luta pela anistia aos presos políticos, e foi nela que a guerreira da liberdade mostrou a sua força indomável. 

Criou-se, com sua participação decisiva, o Movimento de Mulheres para Anistia Ampla, Geral e Irrestrita que, iniciado no Ceará, alcançaria expressão nacional.

Lançou-se também a União das Mulheres Cearenses, não só um baluarte da luta pelos direitos das companheiras, como também reforço na luta pela redemocratização, que naquele momento tinha um significado especial, com Rosa nele desempenhando um papel de liderança exemplar.

Estruturou-se, ainda (e sempre com a participação da Rosa), o
Comitê Democrático Operário Popular, que encabeçou iniciativas inéditas em defesa dos despejados das terras urbanas, como ocorreu em 1979 na luta da José Bastos, marco histórico da retomada do fôlego contra uma ditadura que se tornava cada vez mais impopular. 

Rosa e a então deputada estadual Maria Luíza fizeram valer a resistência contra a tirania, conquistando a terra onde hoje está situado o Parque São Miguel e Parque Genibau. 

Como advogado aprendi que a luta na qual eu me engajava transcendia os aspectos jurídicos do direito burguês; em muito devo isso às conversas com você Rosa, guerreira da liberdade e mestra da universidade da virtude e da honra. 

Seguiram-se lutas populares vitoriosas, nas quais não faltaram os brados incansáveis daquela voz que ecoará por séculos afora, porque o exemplo da Rosa está gravado na memória e na história do Brasil e do Ceará, encravado numa rocha de granito do panteão das heroínas, tal qual aquelas dos monólitos de sua cidade natal, o Quixadá (cantado em prosa e verso pelo Cego Aderaldo, em suas ruas ensolaradas e noites estreladas). 
Amigas e companheiras de ideais: Rosa e Maria Luíza.

Rosa foi artífice de um fato histórico na Fortaleza rebelde e indomável do Dragão do Mar: a vitória de Maria Luíza, primeira mulher a eleger-se prefeita de uma capital brasileira, e com um programa revolucionário! 

Sua companheira de tantas lutas, Maria Luiza fez um governo sério e abnegado, a despeito de todas as dificuldades enfrentadas por não existir ainda a autonomia financeira constitucional (a qual só viria em 1989, após o término do seu mandato) e das perseguições movidas pelos poderosos contra um modelo que, no entender deles, não podia ser vitorioso. 

Entretanto, tal governo jamais cedeu às concessões e alianças fáceis e traidoras, nem renegou os seus princípios revolucionários. Daí a tentativa de apagá-lo da memória histórica cearense.  

Rosa sempre buscou a verdade revolucionária, mesmo que tal busca, em determinados momentos e na visão de alguns, parecesse desfocada da realidade. 

Foi assim que, ao compreender as limitações e o esgotamento das lutas eleitorais, e compreendendo a profundidade da crítica do valor marxiana, bem como a convergência desta compreensão e constatação quanto ao limite interno e externo do capitalismo (que está a ameaçar a vida no planeta), não titubeou em empunhar a bandeira da emancipação transnacional. 

E o fez a despeito de todas as dificuldades de um começo de luta na contramão do sistema capitalista, convicta de que tal movimento deslocaria, desde já e mais inda num futuro próximo, a mesmice e a desesperança do processo eleitoral e da conciliação de classe para a lata do lixo da história.    
Hoje, Rosa, a dor pela perda da sua presença física nos embates e discussões, é substituída pela certeza de que seu exemplo é imorredouro. 

Nós haveremos de empunhar a sua bandeira de luta e de honrar o seu legado. 

Você agora é inatingível pelos seus algozes e o seu nome passa a ser uma lenda que fortalece a crença na liberdade, na justiça e na emancipação humana.

Companheira Rosa Maria Ferreira da Fonseca? Presente! Agora e sempre! 
(por Dalton Rosado, em seu nome e
no dos companheiros do
Crítica Radical) 

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