domingo, 6 de dezembro de 2020

ATUALIZAÇÃO DA FÓRMULA DO "KARATE KID", A MINISSÉRIE "O GAMBITO DA RAINHA" BEM QUE PODERIA CHAMAR-SE "CHESS GIRL"

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igado no xadrez desde a minha meninice, eu já assistira a, no mínimo, uma dezena de filmes sobre a trajetória de enxadristas reais ou fictícios quando foi lançada a minissérie O gambito da rainha, criada por Scott Frank e Allan Scott, com sete episódios totalizando 6h33.

Então, apesar de iniciar sempre as minhas partidas com o dito gambito da dama, nem esta coincidência me animou a encarar a série. Só reavaliei por causa do surpreendente sucesso na TV por assinatura (me deixou curioso) e da recomendação da minha filha mais velha, que gostou muito.

Trata-se de um melodrama sobre uma menina que perde a mãe e  acaba no fundo do poço: um orfanato mantido por uma instituição religiosa. Lá um improvável zelador lhe ensina xadrez às escondidas da direção e lá também ela se vicia num calmante que lhe dá barato. E passa o resto da série dividida entre a tentação das bebidas e das drogas e a redenção como enxadrista. 

No fundo, embora o público mais sofisticado que a está curtindo não se dê conta, a receita do Karate Kid foi atualizada e temos agora uma Chess Girl. São dois produtos da indústria de entretenimento que mostram trajetórias atípicas mas fascinantes, até porque os personagens principais cativam e atraem a torcida dos espectadores:
— 
a dupla Daniel LaRusso (Ralph Macchio) e Sr. Miyagi (Pat Morita) no primeiro, juntando um filho sem pai com um pai que perdeu a família num bombardeio da 2ª Guerra Mundial; e, 
— no segundo, Beth Harmon (Anya Taylor-Joy, que lembra a Natassja Kinski quando jovem e tem um olhar mais expressivo ainda), a Cinderela conduzida pela carruagem do xadrez para o baile da corte, mas cujos traumas a fazem amiúde embarcar na abóbora da volta para a autodestruição.

Uma boa sacada foi ambientar a história no final dos '60, período em que a
guerra fria fez até o xadrez virar um peão (o duplo sentido cai como uma luva) da guerra de propaganda entre EUA e URSS.

Assim, depois de o furacão Bobby Fischer (tão genial quanto dividido entre a severa disciplina enxadrística e objetivos mais prosaicos, como grana e holofotes) conquistar e manter por três anos a hegemonia do xadrez mundial, os estadunidenses pegaram gosto pela coisa e resolveram encontrar outro alguém que humilhasse os soviéticos num dos esportes favoritos dos ditos cujos.  

Primeiramente elegeram como seu queridinho Viktor Korchnoi, um grande mestre internacional que em 1976 escolheu a liberdade, emigrando da União Soviética para morar na Suíça, mas dando a nítida impressão de que o fazia apenas por considerar que a federação de xadrez da URSS o desfavorecia na corrida atrás do título mundial. Não adiantou: disputou duas vezes a coroa com Anatoly Karpov, em 1978 e 1981, fracassando em ambas as tentativas.

Mais sorte tiveram os propagandistas dos EUA na escolha seguinte, um jovem enxadrista de estilo ousado e agressivo, muito melhor do que Korchnoi e um verdadeiro dissidente do burocratizado e fossilizado regime soviético: Garry Kasparov. Este protagonizou EM 1985 a maior disputa de título mundial de todos os tempos, contra Anatoly Karpov (foto abaixo).

O cauteloso Karpov começou se defendendo bem e aproveitando os erros de Kasparov, que se lançava com volúpia ao ataque. Colocou 5x1 no marcador. Precisava só da sexta vitória para vencer o match.
Aí Kasparov resolveu responder na mesma moeda: retrancou o seu jogo e não correu mais risco nenhum. Deu-se, então, uma sequência infernal de empates, uns vinte, se bem me lembro.

O franzino Karpov tinha menos resistência física e mental: na 47ª partida começou a desmoronar. Perdeu essa e a seguinte. Como as regras não admitiam interrupção por decisão médica, só lhe restava entregar os pontos ou ir para o tabuleiro sofrer mais três derrotas. Estava inapelavelmente vencido.

Foi quando o presidente da federação, um filipino, anulou o match por desumanidade. Decisão criticadíssima. E, quando nova disputa se travou a partir do zero, alguns meses depois, Kasparov, claro, massacrou Karpov. Depois de cumprir, assim, seu rito de passagem, ele se manteria durante os 15 anos seguintes como o maior de todos (de sua e das outras épocas).

Um detalhe significativo da série é quando Beth Harmon vê grandes mestres soviéticos analisando com Borgov (Marcin Dorocinski) a posição em que a partida havia sido interrompida. E o Benny (Thomas Brodie-Sangster) também já a advertira que, contra estrangeiros, a elite do xadrez da URSS atuava unida, todos por um.

Foi o que destruiu o melhor enxadrista que o Brasil já produziu, o Mequinho: p. ex. nas quartas-de-final do torneio dos candidatos ao direito de desafiar o campeão mundial, em 1974, ele tinha de analisar as partidas interrompidas madrugadas adentro, com a ajuda de poucos e fracos enxadristas brasileiros, enquanto Korchnoi ia passear com a família e deixava a tarefa com seu fabuloso time, só tomando conhecimento das conclusões na manhã do dia seguinte. 

O efeito cumulativo do esforço excessivo efetuado nessa e em tantas outras ocasiões certamente teve influência decisiva para ele para contrair uma miastenia grave em 1978.

Senti na pele como a obsessão do xadrez age. Eu e um grande amigo, aliás, vivemos o mesmo processo, com resultados ligeiramente diversos.

Ele, engenheiro de alto gabarito, trabalhando numa grande empresa pública que tinha enxadristas aos montes, conseguiu chegar à final do torneio interno. Capturou a dama do adversário, relaxou, deixou-se surpreender e perdeu uma partida praticamente ganha. 

Passou algumas semanas remoendo o que ocorrera, como errara, o que deveria ter feito, etc. Finalmente, concluindo que assim acabaria enlouquecendo, desistiu por completo do xadrez.

Eu também disputei com colegas de trabalho. Nem era tão significativa a competição, mas fiquei extremamente irritado por, com as brancas, ter sucumbido a um adversário de jogo calculista e covarde, que forçou trocas de todas as peças principais e secundárias, até sobrarem no tabuleiro os reis e um peão dele que eu não podia impedi-lo de coroar e transformar em dama. 

Eu passei uns 10 dias obcecado não com o que ocorrera, mas com a ansiedade da revanche. Não queria apenas derrotá-lo, mas o fazer de forma devastadora, mostrando como também se pode ganhar assumindo riscos e jogando com coragem.

Sei lá como eu ficaria se fracassasse. Mas, atuando de forma kamikaze como nunca, acabei obtendo uma vitória rápida que me lavou a alma. Provavelmente devo tê-lo surpreendido por cair matando antes mesmo de desenvolver as peças, como se estivesse eu a jogar com as brancas. 

Mas, passado o transe, decidi que nunca mais deixaria o xadrez me levar tão longe. E, desde então, nas raras ocasiões em que voltei a jogar, foi sempre encarando-o como esporte e não como disputa de vida ou morte.
Por último: o melhor dos muitos filmes sobre xadrez que vi foi
Lances Inocentes (d. Steven Zillian, 1993), sobre um personagem verídico, jovem prodígio do tabuleiro que começa derrotando todos os garotos de sua faixa de idade, mas de repente é surpreendido pela aparição de um menino melhor ainda. 

A pedra no caminho o abala muito, mas ele acaba dando a volta por cima ao mesclar as lições do mestre (Ben Kingsley) contratado pelo pai (Joe Mantegna) com os ensinamentos de um enxadrista de parques (Laurence Fishburne, foto acima) que se sustenta apostando em partidas-relâmpago e as vencendo. Ou seja, seu diferencial passa a ser o de dominar, além de teoria, também os macetes e improvisações do xadrez das ruas.     

E o melhor de tudo: depois de obter sua vingança e recuperar a hegemonia, ele não se restringe mais ao xadrez, passando a praticar vários outros esportes e saindo-se bem, no nível de atleta universitário, em todos. Foi um desfecho inesperado, mas muito mais saudável do que a compulsão pelas vitórias. (por Celso Lungaretti)
Em O sétimo selo, obra-prima de Ingmar Bergman, o cavaleiro 
disputa uma partida de xadrez contra a própria Morte e,
se conseguir derrotá-la, terá sua vida poupada.

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