sábado, 18 de abril de 2020

BATTISTI SE QUEIXA DE QUE AUTORIDADES ITALIANAS COMETEM ABUSOS E TÊM COMO OBJETIVO FAZÊ-LO APODRECER NA PRISÃO

A revista Fórum recebeu nesta 6ª feira (17) uma carta do escritor italiano Cesare Battisti, cuja íntegra está reproduzida abaixo. Ao final, farei alguns comentários. 
(Celso Lungaretti) 
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Queridos amigos e companheiros,

quinze meses se passaram desde o meu sequestro em Santa Cruz e a subsequente deportação forçada para Roma. Desde então, estou num regime de isolamento normalmente reservado, por um período máximo de quinze dias, a prisioneiros submetidos a um procedimento punitivo. Obviamente não é esse o meu caso, na verdade represento um acidente sem precedentes no sistema penitenciário italiano.

Até agora, eu tenho vivido passivamente (tinha outra opção?) e sofro com o abuso de poder pelos seguintes motivos: eu não tinha informações sobre meus direitos previstos pela Ordem Penitenciária; os meses que passei escrevendo meu último romance me ajudaram a suportar o claustro ao qual sou forçado ilegalmente. 

Hoje essas duas condições deixaram de existir. A redação do livro, escrita com meios improvisados, está terminada. Um ano de isolamento foi longo o suficiente para me revelar os abusos orquestrados pelo ministério, com o objetivo óbvio de me fazer apodrecer na prisão, como prometeu publicamente faz um tempo um ministro de Estado.
Seu real perfil de risco hoje é nenhum

O nível máximo foi atingido há dois meses, quando me vi recusado o direito sacrossanto da videochamada com meu filho de seis anos que mora no Brasil. Uma rejeição ministerial decidida às custas das próprias leis italianas, bem como da Convenção da ONU sobre os direitos da criança e das disposições europeias sobre o assunto.

O massacre midiático orquestrado pelo Estado sobre o caso Cesare Battisti permitiu que uma violação dramática dos direitos humanos ocorresse com impunidade no seio de uma democracia européia. Isso só foi possível porque, tendo o favor de alguns meios de comunicação, as autoridades responsáveis pelos abusos acreditavam estar a salvo de qualquer escândalo público.

Eu sei que existem aqui e noutros lugares homens e mulheres que nunca aceitaram as informações maliciosas transmitidas sobre o suposto monstro-mito Cesare Battisti. É a essas pessoas que apelo, para que suas vozes sejam ouvidas contra a brutalidade e a injustiça. Com o objetivo de alertar o Estado para que as leis nacionais sejam respeitadas. Sem exceções e para toda a população detida.

Sei que será uma batalha difícil, mas é importante agir, romper o muro do silêncio. Caso contrário, aqueles partidários do Estado de emergência terão o aval para realizar seus planos obscuros, sobre a minha pele e provavelmente, sobre a de milhares de outros presos.

O isolamento me obriga a fazer valer apenas minhas razões. Os argumentos que posso fornecer àqueles que experimentam a sociedade e não sofrem com ela são objetivos:
Em 2015 casou com a brasileira Joice Lima 
1. Sou forçado a um isolamento abusivo, sem nunca entrar em contato com outros prisioneiros.
2. Submetido a uma espécie de regime permanente de punição, sem motivo declarado, violando leis e regras estabelecidas; só me é concedida uma hora de banho de sol, sempre e somente na hora do almoço, ou seja, a escolha de um exclui o outro.
3. Me foram negadas as ferramentas necessárias para realizar corretamente meu trabalho como escritor, conforme autoriza a lei garantida a todos, inclusive para aqueles que pertencem à alta cúpula de vigilância.
4. Estou preso no circuito AS2 (para terroristas), quando é evidente que não há perigo de fato que justifique tal medida (há motivos para se perguntar quantos outros estão na mesma situação). Os quarenta anos de refúgio político vividos em absoluta transparência, sempre monitorados, não revelariam o meu real perfil de risco?
5. Me mantém numa ilha, longe de todos os afetos e possibilidades de inserção, numa prisão que goza de uma reputação de rigor excessivo. Isso com o objetivo de debilitar as resistências físicas e psicológicas e reduzir o contato com o exterior, dadas as dificuldades em me alcançar.
6. No auge da covardia, sou impedido de manter um vínculo paterno com um garoto de seis anos de idade.
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Primo Levi disse que um homem é reduzido a besta para fazer o torturador (atormentador) sentir-se  menos culpado.
"numa prisão que goza de reputação de rigor excessivo"
Eis aqui, queridos amigos e companheiros, a situação que passei em silêncio durante esses quinze meses em Oristano. Digo em silêncio, porque o monstro criado para o uso e consumo de frustrações públicas (com todo respeito pelas vítimas), também é proibido de reclamar seus direitos, sob pena de acordar de novo o linchamento publico. Mesmo quando as injustiças em questão prejudicam o respeito pelas famílias e pela sociedade.

Agradeço a todos mais uma vez pela solidariedade. Um abraço. (Cesare Battisti)

*  *  *

Fiquei triste ao saber que o Cesare encontra-se em tais condições e frustrado por constatar minha impotência para prestar-lhe qualquer auxílio, agora que o palco de sua desdita sem fim se deslocou para a Itália e os brasileiros estamos em meio a uma uma tragédia coletiva que mobiliza toda nossa atenção e nossos melhores esforços. 

Fossem outras as condições e certamente eu e muitos outros participantes da luta por sua liberdade em 2007/2011 tentaríamos atender o seu pedido da melhor forma possível. 

De resto, com a sinceridade que sempre existiu entre nós, eu lhe pediria que contasse o trecho da história que ele pulou, entre sua carta de setembro e esta de ontem.
Era uma luta impossível de vencermos. Mas Davi derrotou Golias

Pois, o que dela se depreendia (e também de outras informações por mim recebidas) era que, cedendo a uma chantagem das autoridades italianas, ele admitira assassinatos que sempre negara, coonestando uma farsa apenas para que o deixassem cumprir sua pena em condições minimamente dignas. Vide este trecho da carta de sete meses atrás:
"...valeu a pena? Sim, sem dúvida (...), porque, apesar do massacre, ainda tenho vontade de ter um cérebro todo meu, uma cadeira e uma mesa para escrever a vocês, à minha família e a todos aqueles que ainda querem ler".
O que aconteceu desde então? O acordo pelo qual o Cesare teria pagado preço tão terrível está sendo descumprido? É isto? Se for, gostaríamos de saber, até para protestarmos juntos, depois que as atuais agruras brasileiras tiverem fim.  

Caso contrário, é igualmente importante que saibamos, para podermos refletir e nos posicionar sobre um quadro diferente daquele dentro do qual atuávamos desde o dia de sua prisão no Brasil.  (Celso Lungaretti)  

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