sábado, 7 de dezembro de 2019

O EXCLUDENTE DE ILICITUDE DO MORO É SÓ UM VERNIZ LEGAL PARA A "LEI DO ABATE"

Ela foi algemada e presa por desobedecer a uma ordem ilegal
demétrio magnoli
ACONTECEU
NO CANADÁ
Bela Kosoian reside em Laval, na Grande Montréal, não em Paraisópolis. 

Dias atrás, a Corte Suprema do Canadá mandou que lhe paguem C$ 20 mil (cerca de R$ 63 mil), cotizados entre a prefeitura da cidade, a empresa de transporte e um policial arbitrário. A sentença precisa ser lida por João Doria e os comandantes da PM paulista.

O caso ocorreu em 2009. Bela foi multada, algemada e presa numa estação de metrô por não obedecer à ordem de um policial de segurar o corrimão da escada rolante e, em seguida, recusar-se a exibir um documento de identidade. Dois tribunais rejeitaram sua ação por danos morais. Ela apelou à instância superior e triunfou. A decisão é um marco civilizatório.

O protocolo é matar à vontade... nas favelas, obviamente!
Os réus se defenderam mostrando fotos da placa que estimula o uso do corrimão. Explicaram, ainda, o treinamento oferecido aos policiais, no qual passa-se a impressão de que a advertência de segurança tem força legal. 

Não colou. Os juízes escreveram que “um policial sensato” não interpretaria a desobediência como uma violação da lei e sustentaram o direito de Bela de desobedecer a uma “ordem ilegal”. 

O trecho crucial da sentença deveria ser emoldurado e pendurado nas delegacias e quartéis das polícias brasileiras:
"Para conduzir sua missão de proteger a paz, a ordem e a segurança pública, policiais são chamados a limitar os direitos e liberdades dos cidadãos usando o poder coercitivo do Estado. Porque é inegável o risco de abusos, é importante que sempre exista um fundamento legal para as ações adotadas pelos policiais; na ausência de tal justificativa, as condutas deles são ilegais e não podem ser toleradas".
"rebaixando a polícia ao estatuto de milícia"
A criminosa ofensiva policial no baile funk de Paraisópolis deve ser avaliada sobre o pano de fundo do episódio do metrô de Laval. As investigações talvez contem a história inteira. 

Mas, antes delas, qualquer pessoa cuja alma não tenha sido destroçada pelo preconceito sabe que policiais sensatos renunciariam a uma perseguição em meio à multidão reunida na rua. 

Doria não aguardou as investigações para defender a ação em Paraisópolis. Das suas palavras sórdidas já se extrai a conclusão de que a missão da PM era, de fato, reprimir o baile —e que isso vai continuar. No Canadá, o policial pagou apenas um terço da indenização de Bela.

As perguntas precisam subir a ladeira que conduz ao comando da PM e ao governador. Que tipo de treinamento recebe a PM paulista? Qual é a bússola política que mostra o rumo aos responsáveis pela segurança pública? Qual é a diferença —prática, não retórica— entre Doria e Witzel?

O governador lamentou as mortes, etc. e tal, mas prometeu manter o protocolo. No primeiro semestre, a polícia foi responsável por um terço das mortes violentas no estado. Diante desse número, Doria declarou que não existe obrigatoriedade para a redução de vítimas em intervenções policiais.
"A PM é responsável por um terço das mortes violentas em SP"
O protocolo é matar à vontade —com a condição de que os alvos não incluam frequentadores do Iguatemi. O protocolo, além de tudo, afronta os policiais sensatos, rebaixando a polícia ao estatuto de milícia. 

“As condutas deles são ilegais e não podem ser toleradas.” Os juízes canadenses referiram-se aos policiais insensatos. Por aqui, a frase aplica-se aos homens de bem —moralistas, profundamente religiosos, defensores da família— sentados nos palácios do Planalto, dos Bandeirantes e da Guanabara. 

O programa deles não é a redução da letalidade. É o excludente de ilicitude de Moro, um verniz legal para a lei do abate.

Acima, dei de barato que ocorreu mesmo a perseguição alegada pela PM. As testemunhas dizem coisa diferente. Moradores da favela contam histórias incontáveis de ações policiais imotivadas e violentas. A canadense Bela não mora em Paraisópolis. Lá, o que seria dela se não obedecesse a uma ordem ilegal ou recusasse identificar-se a um policial? (por Demétrio Magnoli)

3 comentários:

Anônimo disse...

***
Em O Sofista Platão estabelece que não se deve contar histórias.
Histórias (mitos) são a explicação do ente por intermédio de outro ente.

Ocorre que Demétrio conta uma parte da história, as testemunhas outro tanto dela, os incomodados pelo pancadão mais um pouco e a polícia a sua versão oficial.

Por que nunca se escuta os antigões que sabiam das coisas?

Isto posto, direi o que me evocam estas histórias.
Evocam (Evoé!) a imagem de um deus Dionísio incomodando muito!
Visualizo que é o êxtase dionisíaco quem está sendo considerado algo a ser extirpado.
Pelo jeito, esses caras ainda não compreenderam nada de si mesmos e nem da vida que querem viver.
Tanto os bacantes quanto os policiais.
Ambos alienados da realidade, do seu entorno, das causas e consequências. E, principalmente, de como ser no mundo de maneira elegante.
.
Por enquanto, só o caos reina entre um pancadão (funkeiro) e outro (policial).
É "tiro, porrada e bomba" de todos os lados.
***
SF

Luiz C. Barbosa disse...

Muito erudito o que escreveu SF. No entanto a repressão foi feita por uma polícia assassina. O Modus operandi [cerco, corte de saída de emergência] organizado por oficiais portadores de valores desumanos.

Li muitas notícias a respeito e nenhuma reportou se os policiais eram da tropa choque ou da Rota, o que dá no mesmo.

Parece que entre os policiais desses esquadrões especializados em repressões há um certo valor intrínseco de todos eles terem a mãos manchadas de sangue para serem valorizados perante à "irmandade" fardada.

Há algum tempo uns trintas homens do batalhão de choque ficaram estacionados, perfilados com seus escudos, debaixo da marquise do Conjunto Nacional para caso de "emergência" numa passeata pacífica que ia ocorrer.

Era um fim de tarde agradável,em frente ao batalhão passavam jovens mulheres descontraídas, muitas conversando. De óculos escuros, observei por vários minutos a reação de muitos deles ante aquela beleza indisfarçável que tem a juventude: uns com olhar de concupiscência , outros de ódio da liberdade daquelas jovens.
Quando soltos agem selvagemente se não houver um firme comando, mas que toleram as mortes que chamam de excessos" ocultando, se não fotografados os crimes, os responsáveis.

São também usados para desalojarem áreas ocupadas para entregarem-na a grandes especuladores imobiliários. Depois voltam para casa, quase sempre uma casa de fundos em que pagam aluguel.

As consequências são trágicas individualmente, alcoolismo,suicídio, desequilíbrio mental emocionalmente para o resto da vida. Não é consolo.

SF disse...

Desde que comecei com esse negócio de estudar filosofia estou posando de erudito, sem ser!
Escrevi deste jeito para provocar mesmo.
A narrativa, a tragédia, a linguagem fazem parte da concretude do ser humano e de sua qualidade única de existir para ser.
Sob este aspecto, ambos os grupos participantes deste drama letal tem sido tolhidos de realizarem plenamente sua condição humana, assemelhando-se mais a bestas.
Fatos como estes só ocorrem numa sociedade capitalista que, além de esquizofrênica, é paranóica.
E ineficiente como seu deus mercado.

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