domingo, 8 de dezembro de 2019

EXISTEM BRASILEIROS CORDIAIS? TERÃO EXISTIDO EM ALGUMA ÉPOCA?

jaime pinsky
SOMOS MESMO CORDIAIS?
Para dizer a verdade, não sei se algum dia os brasileiros se caracterizaram pela cordialidade. Pode-se dizer que somos informais com o próximo, mal conhecemos alguém e já nos tornamos despojados no trato —logo chamamos o outro de você, abandonamos os títulos e o sobrenome, e não nos envergonhamos em nomeá-lo com um diminutivo como se fosse velho amigo. 

Também somos pródigos em estabelecer contato físico: usamos as mãos sem problemas, seja em direção a um bebê cujos pais nem conhecemos (que gracinha, é menino ou menina?) ou um cachorro (é manso, quantos meses tem?), batemos no peito do outro (meu marca-passo sofre com o afeto de conhecidos e desconhecidos), damos beijinhos em homens e mulheres. 

Mas praticamos um cuidadoso regime de segregação social e nossa pretensa cordialidade dificilmente se manifesta para com os menos iguais. Abraços, beijos e elevadores sociais não são para todos no Brasil.

A discriminação social não é oficial, uma vez que a Constituição insiste em afirmar que todos são iguais perante a lei. Sabemos todos que isso é letra morta. 

Sabe o poderoso, que consegue contratar um excelente escritório de advocacia para defendê-lo com unhas, dentes e recursos até a prescrição da suposta pena. 

Sabe o pobre, que não se engana sobre o que o espera quando infringe a lei. 

Sabe o ministro do Supremo quando elucubra longos pareceres fazendo de conta que trata todos da mesma forma e não aplica justiça de classe. 

Sabe o advogado, que insiste em afirmar que defende bandidos ricos apenas porque todos os lados devem ser ouvidos (mas ele sabe que uns são mais bem ouvidos do que outros).

Todos também têm direito à educação. 

Só que a educação pública, quando alcançava até a classe média, era de excelente qualidade. Da minha turma do então ginásio e colégio saíram desembargadores, promotores, médicos, escritores, geógrafos, historiadores, escritores, gente de teatro, administradores de grandes empresas. 

Agora que a escola se expandiu para todos os segmentos sociais, por mais que professores isolados se esforcem, o ensino médio (correspondente ao antigo colegial) forma muita gente que tem dificuldades em ler e compreender frases completas e escrever uma sequência de pensamento articulado.
Não fossem as cotas, o número de estudantes a entrar nas melhores faculdades seria irrisório. A escola, que deveria ser um local democrático em que pobres e ricos demonstrariam seus méritos, acaba sendo um espaço onde a desigualdade se manifesta com mais nitidez e profundidade (pagando mais se consegue os melhores professores). E nenhum governo, qualquer que tenha sido sua orientação ideológica, avançou no sentido de igualar as oportunidades dos alunos.

Vale a pena falar do direito à habitação? Das pessoas vivendo nas bordas da cidade, de famílias de trabalhadores morando ao longo de córregos alimentados por esgotos, em bairros sem nenhuma estrutura de lazer, bairros violentos (estes sim, não aqueles em que nós, medrosos, moramos), dos quais médicos e professores querem distância, bairros visitados apenas em vésperas de eleições, alvejados por discursos sedutores proferidos por políticos que veem a região como curral eleitoral e os supostos cidadãos como gado votante.
É muita pretensão achar que apalpar bochechas nos faz cordiais. (por Jaime Pinsky, historiador, professor universitário, escritor e editor, que acaba de completar 80 anos) 
.
Toque do editor — Respondendo às indagações do título do post, definitivamente os brasileiros cordiais são hoje uma espécie em extinção. 

Sobraram alguns por aí e me agrada acreditar que eu seja um deles, mas isto cabe aos outros avaliarem.

O certo é que as ditas redes sociais, sob o pesadelo bolsonarista, escancararam a existência de brasileiros cujo universo mental é o da obtusidade mesquinha, ignorância arrogante, truculência latente e repulsiva desumanidade. 

Tal qual no romance célebre de Oscar Wilde, o que vi nesse retrato de Dorian Gray me estarreceu e deprimiu ao extremo. Então, esses boçais ignaros estavam aí o tempo todo e não saíam do armário porque, intimamente, percebiam serem tão monstruosos por dentro como a imagem do retrato (às escondida de todos) se tornou no livro?!

Quanto aos brasileiros cordiais do passado, eu digo que existiam porque os conheci no Rio de Janeiro de então. Eram os pobres e remediados da zona Norte que não me conheciam e mesmo assim perguntavam, ao cruzarem comigo na rua, se o meu pé enfaixado se devia a ter errado o chute e chutado a trave, fazendo piada com as pequenas desditas do cotidiano porque esta era a maneira como enfrentavam a vida sofrida.

E eram aqueles boêmios de classe média que, me vendo na mesinha de calçada com um chopp numa mão e um livro na outra, vinham jogar conversa fora, sem segundas intenções, porque este era o modo carioca de ser na zona Sul dos anos 60.

Havia, sim, uma cordialidade e uma informalidade que encantavam o mundo. E convivia, sim, com injustiças e discriminações sociais, tanto quanto a democracia ateniense convivia com a escravidão.

Mas, comparado ao inferno que o Brasil se tornou, aquela cidade era mais do que maravilhosa: para quem, como eu, só conhecera o utilitarismo sôfrego de São Paulo, onde tudo corre tão depressa, se você tropeça, não vai levantar,  era um pedaço do paraíso! (por Celso Lungaretti)

13 comentários:

Anônimo disse...

Homenageou o Rio de outrora.

Para completar, poderia também homenagear Tom Jobim (25/01/27-08/12/94), que era um apaixonado pelo Rio e pelo Brasil.

Mas os típicos paulistanos fazem questão de ignorar Getúlio Vargas e Tom Jobim...

celsolungaretti disse...

Ora, este típico paulistano apenas escolheu a canção que mais se adequava ao espírito do texto.

E sempre teve o maior respeito pela obra do Tom Jobim.

E nenhum pelo ditador Getúlio Vargas, gaúcho de nascimento e fascista por vocação, cuja polícia política prendeu cerca de 20 mil brasileiros e submeteu a terríveis torturas parte significativa deles, sendo uma legítima precursora da repressão do regime militar.

Nunca dei nenhum valor à guinada nacionalista de Vargas em sua volta ao poder, pois era tão somente a opção que lhe restava depois de os EUA terem sido os principais responsáveis pelo pé na bunda que ele recebeu em 1945 e por seu ostracismo nos anos seguintes, pois os estadunidenses queriam fora da presidência, em seu quintal, os políticos ideologicamente afinados com os ditadores que eles haviam derrotado nos campos de batalha da Europa (Perón foi igualmente expelido por pressões de bastidores dos EUA).

Não coloque mais o grande maestro em tão indigna companhia.

Anônimo disse...

Indigna companhia?

O voto feminino, a carteira de trabalho, a primeira auditoria da dívida pública, a Petrobrás, a CSN etc.

A desgraça do GV foi a morte precoce de Franklin D. Roosevelt, de quem era muito amigo. Aí assumiu o Truman e o Brasil degringolou...

Típico paulistano que dá tiro no próprio pé.

celsolungaretti disse...

Paulistano que pegou em armas contra a ditadura dos generais e não tem condescendência nenhuma nem com sua antecessora (a de Vargas), nem com a tentativa de reeditá-la (o Bozo).

Já que vc insiste em me relacionar com uma cidade com a qual tenho pouquíssimo em comum, direi também: paulistano da estirpe de Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo, os estudantes que a ditadura do admirador de Hitler e Mussolini assassinou.

celsolungaretti disse...

Por uma trapalhada que eu cometi ao colocar no ar o comentário do internauta Luiz C. Barboza, a conclusão se perdeu e só consegui recuperar a primeira parte, exatamente a que aparece para o editor avaliar se aprova ou não cada comentário recebido. Eis o que dizia:

"Entendo Celso ser da estirpe dos jovens M.M.D.C devido os jovens Martins, Miragaia....não ficarem alheios ao calor dos acontecimentos que ocorria na capital. Corajosos, como a maioria dos jovens, foram até ao local, participaram da movimentação e encontraram a morte.

"Como nunca era devidamente explicado nas escolas, eu sempre imaginava que os jovens M.M.D.C foram abatidos em passeatas ou como o jovem Edson Luis de Lima Souto assassinado pela polícia no restaurante Calabouço no Rio de Janeiro em 1968.

"O escritor Lira Neto, no volume 2 da trilogia sobre Getúlio Vargas, faz o relato histórico: Em 1932, meses antes de rebentar a revolta da burguesia cafeeira, os estudantes, depois de uma noitada resolvem empastelar, incendiar o escritório político getulista que ficava numa sobreloja da rua Barão de Itapetininga com a Praça da República.

"Com uma escada levando uma tocha tentam incendiar o escritório. O que os estudantes não sabiam é que vários getulistas faziam vigília..."

celsolungaretti disse...

Ou seja, um biógrafo de Vargas apresenta uma versão que sataniza os assassinados e implicitamente relativiza os homicídios.

Esquece, p. ex., que empastelar um ninho de fascistas nada tinha de diferente da prática usual da polícia paulista com relação aos adversários da ditadura.

E atribuir-lhes a intenção de "incendiar" tal ninho é o velho artifício de utilizar o que não houve para justificar o que houve. Exatamente o que as viúvas da ditadura militar faziam, ao alegarem que, se não tivesse havido o golpe de Estado e a usurpação do poder, teria acontecido um mirabolante golpe dos comunistas, os mesmos que não conseguiram articular resistência significativa nenhuma àquilo contra o qual alertavam há várias semanas...

Mais: o PCB, que havia sido bestialmente reprimido pela polícia do Brilhante Ustra daqueles tempos, Fillinto Muller (que o jornalista David Nasser qualificou de o réu que ficou faltando no Julgamento de Nuremberg), cometeu a infâmia de aliar-se a Vargas para chegar ao poder na eleição presidencial de 1950.

Nunca conheci pessoalmente revolucionário tão vil a ponto de subir no palanque de quem fora pessoalmente responsável pelo assassinato de sua esposa e mãe de sua filha (Vargas autorizou a entrega de Olga Benário a Hitler). Prestes se prestou a isso.

E, naqueles tempos do stalinismo, o grande líder não só estava sempre certo, como também estivera sempre certo no passado. A falsificação da História sob Stalin era gritante e grotesca, a ponto de serem suprimidas das fotos do passado as imagens de líderes caídos em desgraça. Ou era aplicada a imagem de outra pessoa ou o espaço ficava em branco. É uma aberração algo assim ter acontecido, mas aconteceu.
(continua)

celsolungaretti disse...

(continuação)
Então, muitos historiadores brasileiros do passado escreveram suas obras de acordo com as versões convenientes para o PCB, por convicção ou por medo de patrulhamento. Daí, p. ex., ter sido extremamente minimizada por eles a importância da greve geral de 1917.

Ela tinha tudo para ser tratada como um acontecimento de primeira grandeza: aconteceu no mesmo ano da revolução soviética, foi a primeira greve geral brasileira, dramática (houve várias mortes) e... VITORIOSA!

Mas, por haver sido liderada por anarquistas, não era bem vista pelo PCB, preocupado apenas em não levantar a bola para seus adversário do campo da esquerda. Daí ter permanecido como um episódio secundário até que o anarquismo ressurgiu triunfalmente na Europa com as bandeiras negras erguidas nas barricadas de maio de 1968 em Paris.

Foi aí que uma nova geração de historiadores brasileiros, com a tarefa facilitada porque o PCB perdera quase toda sua influência em função de haver tido comportamento bisonho face ao golpe, se puseram a pesquisar a greve de 1917 e resgataram toda sua grandeza. Lembro-me de haver lido, no suplemento literário de um grande jornal paulista, umas duas páginas em letra miúda sobre um dos livros que escreveram então.

Como meu pai trabalhou 46 anos de sua vida no Cotonifício Crespi (onde a greve começou) e, depois de sua falência, em duas empresas menores que se estabeleceram no mesmo prédio (eu mesmo cheguei a ajudar no fechamento da folha de pagamento mensal, como bico durante um bom tempo), interessei-me imediatamente pelo assunto. Foi chocante constatar como uma página tão heroica para nós havia sido quase apagada da História!

Enfim, o que houve em 1932 foi que manifestantes desarmados tentaram invadir um aparelho fascista e recebidos a tiros e explosões de granadas. Um lado tinha pedras, e outro um arsenal. Exatamente como na "guerra da rua Maria Antônia".

O resto são tentativas de tornar menos repulsiva a imagem daquele que depois se tornaria aliado do PCB, um partido que jamais, JAMAIS, poderia ter passado uma borracha em tudo que acontecera após a chamada Intentona Comunista, como a deportação de Olga e o enlouquecimento do comunista alemão Harry Berger como consequência das torturas getulistas.

Tenho eu também uma leitura para indicar: o artigo ASSASSINATO E TORTURA NA ERA VARGAS, de José Murilo de Carvalho: https://sibila.com.br/critica/assassinato-e-tortura-na-era-vargas/11338

Anônimo disse...

Parabéns pela Crônica, cujo tema eu tinha muita vontade de ler, sobre o Mito do Brasileiro Cordial, ou questões envolvendo solidariedade, Celso!
Pensativo sobre um comentário desiludido feito por Lola Aronovich ( "o mito do brasileiro cordial nunca existiu "), creio que os pontos a serem avaliados são:
somos amistosos ( desde que numa chamada "zona de conforto"), quando os alvos pertencem a mesma classe social, ou aparentem isso em certas ocasiões.
Mas não somos exatamente solidários, a não ser em situações bem específicas, ou como manda o "manual do demagogo", publicado desde sempre, seja por politiqueiros palanqueiros ( Nós simplesmente achávamos graça do Odorico de Paulo Gracindo ), seja por comunicadores bravateiros e falaciosos bem ao estilo "amigão da dona de casa e do trabalhador", e seus assistencialismos baratos.
Contando com a ação contra producente de celebridades ( ou sub celebridades), que resolveram empastelar o ativismo político e social, com seu ativismo fashion de conveniências, mas sem se bancar e tão pouco abrir mão, de nenhuma de suas comodidades em nome do próximo.
Difícil sinal de cordialidade, e solidariedade desprendida, desinteressada.
No Filme O Gladiador, há uma passagem em que o senador Gracchus ( Derek Jacobi ), quando indagado sobre o fato de pertencer ou não ao povo ( devido a sua elevada classe social ), reponde:
"- Eu tento ser um homem a favor do povo, não igual a ele ".
Creio que fator importante de cordialidade, tenha a ver com a maneira que se reproduzir um comportamento praticado por quem tem influência na nossa formação, seja por aqueles que nos educaram, ou por aqueles a quem admiramos.

Abração do Hebert

celsolungaretti disse...

Hebert,

vou também citar um filme que me sensibilizou, embora não fosse nenhum clássico da sétima arte: "Operação Yakuza", do Sidney Pollack. A certa altura, um japonês explica o que o "dever"significava para eles: "Se você não acredita em dever, não é obrigado a nada. Mas, se acredita, fará tudo para cumpri-lo, caso contrário vai ver a si próprio como indigno".

Isso me sensibilizou porque é exatamente como me senti várias vezes na vida: vinham pedir-me coisas que, para ser fiel aos meus valores, eu não podia deixar de fazer. Ao mesmo tempo, tinha plena consciência de que aquilo ia me causar enormes transtornos e até me colocar em perigo.

Nunca recusei, porque sou um homem que, se perder a auto-estima, perderei tudo. Apenas lamentava intimamente ter sido eu o escolhido para receber aquele pedido de ajuda. Não tinha ilusão nenhuma quanto ao fato de que seria uma roubada nem vacilava um segundo antes de me comprometer.

Anônimo disse...

https://www.youtube.com/watch?v=dHdsEaTZSxI

já passou por diversas vezes, seja no Suoer Cine, seja no Domingo Maior, ou na Seção de Gala ( e até na Band ), embora eu nunca tenha visto todo.
Como são valiosas as obras, que nós passam uma mensagem, não é verdade?!

Abraço do Hebert, e o´tima semana Celso.

Anônimo disse...

É bom deixar claro que até pouco antes de eclodir a 2a Guerra Mundial (1939), havia relação diplomática normal dos países ocidentais com a Alemanha, inclusive com os EUA.

Também não podemos esquecer de que o Brasil deixou de ser um país rural somente na década de 1950.

Para se ter uma ideia, enquanto o Empire State era inaugurado em 1931, o edifício mais alto do mundo na época, no Brasil estava ruindo a política do café com leite, dos coronéis com o voto de cabresto.

É muito fácil abstrair todo o contexto da época e aderir ao maniqueísmo com a figura do grande brasileiro que foi GV.

celsolungaretti disse...

Anônimo das 22h31,

para quem considera que a plebe ignara tem de ser iludida por migalhas ou calada com chicote, o Vargas pode ter sido um "grande brasileiro".

Para quem não aceita nenhuma forma de autoritarismo e luta pela libertação da humanidade, consciente de que só haverá justiça social e liberdade quando todos os países se emanciparem, o Vargas foi apenas um fascista a mais.

Um fascista que admirava e imitava Mussolini mas que não ousou bater de frente com os EUA, recebendo, como retribuição, um formidável pé na bunda em 1945.

Afora as torturas e assassinatos que marcaram seu período ditatorial, veja quantos dos seus cupinchas de então tiveram papel destacado no golpe de 1964 e nos governos militares.

A ditadura dos generais nada mais foi do que uma retomada e aprofundamento da ditadura de Vargas. O ovo da serpente eclodiu de novo.

celsolungaretti disse...

Hebert,

eu sabia que o "Operação Yakuza" estava disponibilizado no Youtube. Mas, por uma posição de princípio, não faço posts de filmes falados em inglês e sem legendas em português ou espanhol.

Nesse caso, é falado em inglês e tem uma legenda... também em inglês. Como considero que brasileiro nenhum deva ser obrigado a entender o idioma da potência dominante, prefiro esperar que qualquer dia surja uma versão dublada ou com a legenda correta.

Um abração!

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