sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

ARTISTAS E POETAS PRECISAM DE UTOPIA. PARA OS PODEROSOS, BASTA O CAPITAL...

rogério cezar de cerqueira leite
VISITA DE
 UM PROFETA
Era uma noite escura, sem lua, sem estrelas. Sem o canto dos grilos e sem o coaxar das rãs. Um silêncio absoluto, de som e de luz. 

Foi quando, subitamente, notei à porta uma silhueta sinistra, um vulto agourento. Sem rosto, sem ruído, sem forma. Lembrei-me de Edgar Allan Poe, de Machado de Assis e da visita perpétua do corvo profeta. 

Ousei, vacilante, interpelar a lúgubre figura: “Quem sois?”. A resposta veio prontamente: “Sou o fantasma do Brasil futuro”. E depois de um momento de angústia e de perplexidade, que se aliavam à minha fragilidade, continuou: “Você já gastou uma das sete perguntas a que tem direito. Sete, pois sete foram as pragas do Egito”. 

E lá ficou o profeta, rígido, imóvel, até que tive a coragem de fazer-lhe a segunda pergunta: “A que viestes, qual é tua missão?”. Com o que, com voz rouca e soturna, me respondeu: “Aqui venho para dispor os lastros do retorno a tempos imemoriais, a volta ao passado primevo do homem, a redução do humanismo ao imperativo biológico”.
Fiquei estarrecido. Mudo por minutos. Seria possível? Enfim, seria o anjo exterminador? Ou coisa pior ainda? Não obstante, criei coragem e continuei com a terceira pergunta: “Mas senhor, qual a sua estratégia? Como pode pensar em ganhar tão difícil batalha, derrotar a civilização?”. 

Responde o espectro funesto: “Avanço sorrateiro, ambivalente, com pele de cordeiro. Aos poucos substituo a razão pela religião, a liberdade pela disciplina, a ética pela censura, a universidade pela escola militar, o pensador e o filósofo pelo obtuso e oportunista, a decência pela conivência”.

Que bom seria se alguma coisa acontecesse e me tirasse desse embaraço, desse torpor. Um relâmpago, um latido de cão solitário seria suficiente. Mas não, o silêncio era absoluto. Então, sem saída, ensaio a quarta pergunta: “Mas com que forças o senhor conta para ter sucesso nessa guerra de extermínio?”.
"Ora —diz o fantasmagórico profeta—, Napoleão já dizia: ‘Quanto pior o homem, melhor o soldado’. Pois bem, quanto mais ignorante o crente, mais útil o energúmeno". 

E concluiu: "Temos um exército de fanáticos e de oportunistas. Além disso, temos vários psicopatas e fundamentalistas inseridos em posições essenciais de governança do país. Temos meios para cooptar membros vorazes de nossas forças guerreiras, e com isso garantir mudanças pacíficas".

Atrevi-me então a formular a quinta questão: “O senhor não estaria esquecendo a reação das instituições brasileiras, dos intelectuais, da elite empresarial?”. 

Pela primeira vez vi os olhos de meu interlocutor brilharem. Respondeu-me em tom irônico: 
"Ora, que intelectual arriscaria sua mesada, seu fim de semana na praia, pelo bem de seu país? Que instituição, que grupo empresarial abdicaria das benesses que premiam a conivência? Congressistas se vendem às pencas por ementas, ou melhor, por quireras de poder. Juízes são nada mais que vaidade e ostentação. Basta dar-lhes espelhos e tempo de televisão".
Eu já me sentia derrotado. Arrisquei então a sexta e penúltima pergunta, um pouco ingênua, por certo: “Qual é a sua utopia, o seu sonho?”. Pela primeira vez senti uma nuvem de constrangimento no fantasma: “Quem precisa de utopia, de sonho e de consciência?”, disse ele. “Só os fracos, os artistas, os poetas, os inúteis. Para nós, os poderosos, basta o capital”, completou.

Chegou então o momento crucial. Criei coragem. Titubeando, a voz trêmula, insegura. Inquiri: “Profeta ou fantasma, ou o que quer que sejas, diga: quando voltarás para a noite que negrejas?”. 

E a resposta veio aterradora: “Nunca, nunca mais!” (por Rogério Cezar de Cerqueira Leite)

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