sábado, 16 de novembro de 2019

A VERDADEIRA HISTÓRIA DO BEBÊ-DIABO

Vou relatar toda a história sobre o nascimento de um menino com chifres e rabo em São Bernardo do Campo, região do ABC Paulista, que viraria um marco no jornalismo brasileiro.

Em 1975 eu trabalhava pela manhã como repórter policial no jornal Correio Metropolitano, em Santo André, no ABC, e à tarde no jornal Notícias Populares, pertencente ao Grupo Folha, como repórter especial. 

José Lázaro Borges Campos, falecido, amigo inesquecível, era o editor de polícia do NP. Ibrahim Ramadan, nessa época, o diretor de redação.

Eu e o Lazão, assim ele era conhecido, morávamos em Santo André e todos os dias seguíamos juntos para o NP, no 5° andar da Folha de S. Paulo, na Alameda Barão de Limeira. No mês de maio daquele ano corria forte um boato dando conta do nascimento de um bebê que tinha chifres e rabo, num hospital de São Bernardo, que aterrorizava enfermeiras, médicos, falava grosso e até soltava fogo pela boca.
Com o passar dos dias, o boato se alastrou de tal forma que em todos os cantos das sete cidades do ABC só se falava nessa estranha criatura. (...) 

Com tantos comentários, Lázaro Campos me incumbiu de apurar os fatos e escrever uma nota sobre esse boato para o NP de domingo. 

Falei com a direção do Hospital São Bernardo, enfermeiras (os) e médicos. (...) Na verdade, garantiram-me os médicos, um bebê nascera com um prolongamento no cóccix e duas pequenas saliências na testa, problemas resolvidos com uma simples cirurgia na própria maternidade.

Escrevi esse relato, sem nenhum sensacionalismo, no dia 10 de maio de 1975, um sábado e deixei o texto, de 30 linhas, sobre a mesa do Lázaro. O jornal estava para ser fechado e eu desci para esperá-lo na padaria da esquina. Fomos embora juntos, sem comentar nada sobre jornal. No domingo pela manhã percebi que a banca de revistas perto de casa estava repleta de pessoas comprando o NP.
O Frias pai hoje é nome de ponte no Brooklin paulista...

Curioso, me aproximei e consegui o último exemplar que trazia a seguinte manchete: Bebê-diabo nasce em SBC. Fui à página 5 e gelei. Minha assinatura estava abaixo da manchete forçada. Fiquei apavorado, temendo processo e a demissão do jornal por justa causa.

...Entrei cabisbaixo no prédio da Folha. Na verdade, estava apavorado. Fiquei mais ainda quando recebi o aviso para me dirigir, imediatamente, com o Lázaro, à sala de Octávio Frias de Oliveira, dono do Grupo Folha.

Entramos assustados na sala de Frias, esperando um sermão, antes da demissão. Pelo contrário. O homem, que eu ainda não conhecia pessoalmente, estava sorrindo e nos estendeu a mão, cumprimentando pela manchete e informando que, pela primeira vez na história, o NP bateu todos os recordes de venda em bancas.

Custei a acreditar que tudo aquilo era verdade. Segurava a xícara com café, oferecida pelo Frias, com dificuldade, tremendo e ouvindo somente elogios. E a ordem era para darmos sequência no assunto.  
...mas, seus critérios eram estes
E assim foi feito. A notícia tornara-se uma bola de neve. A tiragem do periódico, que era de 80 mil exemplares, ultrapassara a marca dos 200 mil. O povo acreditou na história e o NP começou a inventar uma saga para o bebê-diabo. O caso permaneceu na primeira página do jornal por inacreditáveis 37 dias.

Nas manchetes que seguiram, o bebê-diabo infernizou pessoas, pulou em telhados, pediu sangue para beber, tocou campainhas, palitou os dentes com um facão e até parou um táxi à noite, deixando o motorista assustado ao falar que o destino da corrida seria o inferno.

Amado por uns, odiado por outros e temido por milhares, o bebê-diabo aterrorizou moradores de São Paulo e do Brasil, mesmo sem ter existido. (depoimento publicado em 2008 do repórter, escritor e radialista Edward de Souza, o pai do bebê-diabo)

4 comentários:

Henrique Nascimento disse...

A mensagem é que mídia já está acostumada a produzir 'fake news' ou, no minimo, maquiar reportagens.

Anônimo disse...

Se a família da criança era de gente simples, imagina a pressão psicológica que sofreram só de ouvir os comentários.

marcosomag disse...

O velho "Notícias Populares", cujo criador odiava a esquerda ensinou como a esquerda deveria fazer a sua comunicação com o povo. Textos simples, jocosos, sem temperando com humor todas as notícias. Era só trocar o sinal. Ao invés de deplorar as mobilizações de trabalhadores, elas deveriam ser louvadas. A vida do trabalhador é muito dura para ter que ler um jornal sisudo como a esquerda quase sempre fez no Brasil. Ás vezes, o "Hora do Povo" ensaiava uma linguagem mais popular e leve. Mas, sempre ficou na ameaça.

celsolungaretti disse...

Prezados comentaristas,

fui exumar este assunto exatamente porque estou com o saco cheio de ver donos de jornais, incapazes de escrever duas linhas sem meia-dúzia de erros gramaticais, serem louvados como grandes homens.

O que me decidiu foi o relato da reunião com o Frias pai: o repórter temeroso de ser punido pelo título capcioso da notícia (que não tinha partido dele) e sendo estimulado a vender gato por lebre de forma cada vez mais descarada.

Fiquei me lembrando do Frias filho louvando o pai como "publisher" do jornal, pernóstica macaqueação dos estadunidenses que ninguém usava naquele tempo.

E da polêmica em que um dos Mesquitas jogou na cara dos Frias que eles não eram jornalistas, mas sim meros comerciantes de secos e molhados.

A ponte apropriada para receber o nome do Frias pai teria sido alguma que desabou.

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