sábado, 12 de outubro de 2019

MAIS DE 1 MILHÃO DE MÃES BRASILEIRAS AMARGARAM A MORTE VIOLENTA DOS FILHOS NOS ÚLTIMOS 20 ANOS

oscar vilhena vieira
NORMALIZAÇÃO DO ESTADO DE EXCEÇÃO
"Eu mandei ele impecável para a escola e o Estado me devolveu ele assim." 
Foi dessa forma que Bruna da Silva, levantando o uniforme escolar manchado de sangue de seu filho Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos, morto durante operação policial na favela da Maré, dirigiu-se ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, nesta última semana. 

Deixou claro que não estava ali para afrontar o deputado. Ao contrário, buscava sua ajuda para alertar os parlamentares para os riscos de se aprovar um pacote anticrime, formulado pelo Ministério da Justiça, que amplia a impunidade agentes do Estado.

Bruna carrega o dilacerante sofrimento de mais de 1 milhão de mães que também tiveram seus filhos mortos de forma violenta nas últimas duas décadas. No seu caso, como no da mãe da Ágatha e de um crescente número de mães, a violência partiu daqueles que tinham por obrigação proteger a população.
Marcos Vinícius, vítima da violência policial...
A mãe de Marcos Vinícius, mais do que alertar para a covardia da violência policial, deixou claro que essa violência recai de forma desproporcional sobre certos segmentos pobres e vulneráveis da sociedade:
"A gente paga o Estado; a gente não acha certo o tratamento que nos é dado. Porque o sangue que jorra é o sangue do pobre, não é o sangue do nobre"..
O fato é que a desigualdade profunda e persistente, que parece estar chamando cada vez mais a atenção mesmo de economistas liberais como um fator inibidor do desenvolvimento, também tem um profundo impacto sobre o modo como as sociedades se relacionam com a lei e com o funcionamento do próprio Estado de Direito

Ao cruzar os dados sobre a desigualdade, medida pelo índice de Gini, com os índices internacionais de homicídio e o índice de Estado de Direito em mais de 50 países, meus colegas André Portela e Thais Dietrich, do Centro de Microeconomia da FGV, confirmaram a existência de uma correlação significativa entre maior desigualdade e mais homicídios. Da mesma forma, o governo das leis tende a funcionar pior em sociedades marcadas por mais desigualdade. 

Minha hipótese, que parece coincidir com a experiência de Bruna da Silva, é que em sociedades extremamente desiguais, como a brasileira, a vida, a dor, o sofrimento e o destino daqueles que são mais pobres, mais negros e menos escolarizados, parece valer menos. 

A desigualdade profunda dificulta a percepção de que as pessoas merecem ser tratadas com igual respeito e consideração, independentemente de suas condições sociais, econômicas ou raciais. 
...que já indignara o Brasil quando da morte de Ágatha Félix

Isso distorce a forma como a própria lei é dispensada para distintos setores da população, seja pelo modo negligente como o Estado concebe políticas de justiça e segurança para os mais pobres, p. ex., seja pela maneira arbitrária e violenta com que trata todos aqueles que são vistos como ameaça e, portanto, inimigos a serem abatidos.

O que as mães que se encontraram esta semana com Rodrigo Maia deixaram claro é que a aprovação do pacote do governo, especialmente no que se refere a excludente de ilicitude, tende a transformar o que hoje é ilegal e arbitrário, apesar de sistêmico nas periferias sociais brasileiras, em algo autorizado pela lei, normalizando o estado de exceção para os mais pobres. 

O que o Brasil precisa, ao menos em respeito à dor de nossas mães, é de mais igualdade e de políticas mais eficientes de segurança e justiça, não de mais violência e arbítrio de Estado. (por Oscar Vilhena Vieira, mestre em Direito pela Universidade Columbia e doutor  em Ciência Política pela USP)

2 comentários:

Vandeco disse...

Eu gostaria que me informasse quais foram os governos dos últimos vinte anos?

celsolungaretti disse...

Pelo menos por mim, os governos anteriores aos de Temer e Bolsonaro foram igualmente criticados.

Não só jamais morri de amores por FHC, Lula e Dilma, como considerei extremamente pusilânimes os dois últimos, por não reverterem a militarização do policiamento urbano imposta pela ditadura militar. Cansei de combater e denunciar essa traição aos princípios da esquerda, em vão.

Mas, o que se trata no momento é de não agravar ainda mais um quadro que já é péssimo. O tal excludente de ilicitude é uma aberração, lembra a "licença para matar" das ficções do James Bond.

Related Posts with Thumbnails