sexta-feira, 3 de maio de 2019

AVE, BETH CARVALHO! AVE, MADRINHA DO SAMBA! (um tributo de Dalton Rosado)

Madrinha é apelido carinhoso para quem é mãe com o coração. 

Você recebeu esse apelido da turma do samba por sua capacidade de mostrar ao Brasil e ao mundo que o samba é a nossa identidade cultural maior. 

Que, ao invés de aceitarmos que algum desavisado torça o nariz para nosso ritmo pelo fato de haver nascido do povo, devemos agradecer a esse mesmo povo por tê-lo inventado e aperfeiçoado, mesmo diante da perseguição inicial sofrida (na forma de patrulhamento cultural elitista).

A sua capacidade de exaltar o samba não se deveu apenas ao seu imenso talento, combinando voz, capacidade de execução instrumental e percepção social, mas, sobretudo, à sua sensibilidade musical.

Foram imensos o talento e a sensibilidade da Beth! Ela, num determinado momento,  soube transitar da bossa nova –que é maravilhosa e uma das muitas variações da matriz samba– para a chamada MPB socialmente engajada e, posteriormente, para o samba de raiz, indo resgatar os sambistas (compositores e cantores)  que cantam a vida nos subúrbios sofridos da cidade cindida em classes sociais, e que, com suas poesias sob a forma de melodias repletas de sábias erudições populares, contam a nossa história e promovem a catarse da dor cotidiana com alegria e esperança.     

Não poderiam os poetas do samba ter achado um apelido mais apropriado: madrinha do samba! Melhor do que rainha, termo que implica a existência de súditos subalternos. Madrinha é quem cuida com carinho e amor de mãe, sem pedir troco, num pé de igualdade e gestos fraternos.

Beth Carvalho é o fio condutor final da trajetória que levou o samba (cantado às escondidas no terreiro da Tia Ciata há mais de cem anos e perseguido pelas otoridade de então, cumpridoras da lei que criminalizava os compositores e cantadores de samba como capadócios a serem enquadrados no delito de vadiagem) à consagração em pleno e majestoso Teatro Municipal do Rio de Janeiro, quando foi, finalmente, ovacionado!

Tenho identidades pessoais com a Beth Carvalho que me emocionaram ao saber de ausência física que doravante se imporá entre nós: 
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— ela considerava o samba como uma forma de revolução popular, conceito da qual sou adepto (aliás também Caetano Veloso enfatizou, corretamente, tal poder transformador);
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 era torcedora do Botafogo, o time da estrela solitária, que, como o povo, tem obtido poucas vitórias ultimamente, o que valoriza ainda mais aquelas que são conseguidas graças a esforços heroicos; 
— esteve sempre do campo do agir e pensar que condena o capitalismo e suas regras ditatoriais encobertas pelo o manto hipócrita da democracia burguesa, talvez por ter assistido em casa às dificuldades pessoais enfrentadas pela família, tanto que seu pai foi perseguido pela ditadura militar;
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— era mangueirense de carteirinha (e eu também sou admirador dessa escola).
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[Aliás, em 2007, quando alguns diretores menos sensíveis da Verde-e-Rosa, no desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, a destronaram por questões menores do carro alegórico dos baluartes, fiquei tão chocado que compus uma música sobre o tema, que brevemente estarei disponibilizando aqui.

Uma característica da Beth Carvalho era a generosidade para com os sambistas anônimos que passaram ser reconhecidos após terem contato com sua capacidade e sensibilidade de reconhecimento da boa qualidade de suas composições, acolhendo-os no discutível mercado fonográfico.  

Artistas como Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho, Beto Sem Braço, Sombra, Sombrinha, Élcio Soares, Délcio Carvalho, Alcir Portela, Bira Presidente e Almir Guineto são alguns cujas composições e talentos se tornaram conhecidos graças à interação com o mundo do samba de raiz promovida pela Beth Carvalho, já cantora e instrumentista famosa.

Grupos de sambistas como o Fundo de Quintal e blocos como o Cacique de Ramos foram beneficiados com a generosidade artística de Beth Carvalho e puderam ganhar notoriedade com a promoção visual lhes foi justamente concedida pela madrinha do samba. 

Não apenas artistas populares suburbanos ganharam visibilidade a partir da generosidade da Beth Carvalho, mas expoentes então marginalizados do samba puderam ter os seus talentos revisitados —casos de Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito, Nelson Sargento, Lupicínio Rodrigues e Cartola, além do revival do sempre presente e antológico Noel Rosa. 

Outros já em evidência como Martinho da Vila, Jorge Aragão, Dona Ivone Lara e Gonzaguinha tiveram as suas maravilhosas músicas embelezadas e divulgadas ainda mais pela voz e talento de Beth Carvalho. 

Uma delas ganhou o espaço sideral ao ser enviada numa nave à Marte, com a possibilidade de ser um dia ouvida por seres interplanetários: falamos do gostoso samba “Coisinha tão bonitinha do pai”.

Aliás, por falar em filhos, a Beth, que fez tudo com perfeição, é mãe da bela e talentosa Luana Carvalho, que, independentemente do prestigio de quem lhe deu a vida, tem capacidade de se fazer por ela mesma no campo musical, seguindo os passos da família (a avó de Beth também era musicista, a capacidade musical está, portanto, no seu DNA).

Em 1984 Beth Carvalho foi homenageada pela Escola Unidos do Cabuçu com um samba-enredo em sua homenagem: “Enamorada do Samba”. Justo título para quem a ele dedicou uma vida inteira, e que ora ganha outra dimensão. 
Quem tem pouco mais de 50 anos se lembra muito bem do surgimento daquela voz poderosa, bem colocada, de uma bela mulher com trejeitos harmoniosos e atraentes cantando a música "Andança", de Edmundo Souto, Paulinho Tapajós e Danilo Caymmi, no Festival Internacional da Canção de 1968, conquistando o público e obtendo a 3ª colocação no concorridíssimo e politizado certame musical. 

A música “Andança” é um clássico da chamada MPB, indispensável em qualquer roda de violão e cantadores de samba e MPB, tanto que era sempre exigida pelo público nos shows da Beth Carvalho. 

Costumo dizer que os poetas, como Apollo Natali, não morrem: sobrevivem graças à perpetuação de suas obras. Assim, a interplanetária Beth Carvalho, está perpetuada por sua voz inconfundível e talento excepcional. 

Obrigado, Beth, por ter existido e continuar existindo para sempre em nossa melhor memória afetiva e musical!

Ah, mas como dói essa saudade... (por Dalton Rosado)

Um comentário:

Vandeco disse...

Excelente Texto e homenagem. Parabéns! Os compositores e poetas Milton Nascimento e o saudoso Fernando Brant, escreveram e musicaram uma canção que define a vida de Beth Carvalho no mundo da música. É a música Nos Bailes da Vida, dizendo que “Todo artista tem de ir aonde o povo está” e que “Para cantar nada era longe, tudo tão bom” Ela sempre esteve misturada como o povo, com os sambistas, pagodeiros, músicos e carnavalescos. Estará sempre presente no coração dos brasileiros, com a sua eternidade musical.

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