Timothy John Berners-Lee, hoje e quando estava fazendo nascer a internet... |
Para comemorar os 30 anos da apresentação do seu primeiro projeto que deu origem ao World Wide Web, cujo centro se encontra em Genebra, no Cern – Centro Europeu para a Pesquisa Nuclear, Timothy John Berners-Lee esteve no mês passado com a imprensa e aproveitou para tecer alguns comentários sobre as redes sociais.
A decisão do Cern, de dar ao público acesso à invenção que revolucionou não só o mundo da informação como o contato entre as pessoas, criou alguns perigos que inquietam o inventor.
A vulgarização do uso e do controle das técnicas da web acabou por permitir a certos grupos o domínio do fluxo das informações. Hoje ninguém consegue saber como dirigir o que passa pela web, isto propiciando, segundo Berners-Lee, o risco de sua má manipulação.
...que se tornaria uma formidável ferramenta de manipulação... |
A ideia de se interconectar os contatos logo se expandiu, se multiplicou e surgiram as redes sociais mais rápidas e penetrantes que os até então meios habituais de informação: os jornais, rádios e televisões.
Nos países sem um bom embasamento cultural, as redes sociais praticamente se apossam dos computadores e celulares e rapidamente caem sob o domínio de grupos políticos, extremistas, terroristas, religiosos, além de charlatães de toda espécie, sem existir ainda a possibilidade de um antídoto.
O cientista enumera mesmo os principais perigos que infectam a web: os apelos ao ódio, os trolls (o internauta que envenena os debates na Internet com observações inapropriadas ou provocantes), as falsas informações, as teorias da conspiração, as ações de pirataria, a propagação viral da desinformação e as publicidades que se infiltram e recompensam os blogs na base de cliques.
Berners-Lee não falou, mas todos já conhecem o poder das redes sociais para derrubar e eleger governos, alimentadas muitas vezes por regimes estrangeiros. Hillary Clinton teria sido uma das vítimas.
No Brasil, o PT ferido pela Lava Jato não reagiu com a agilidade necessária para diminuir o impacto das redes sociais comandadas por grupos evangélicos e grupos de direita e extrema-direita disparando informações inverídicas, destruindo imagens consagradas, praticamente no mesmo estilo da campanha de Trump.
...capaz de eleger os mais ineptos mandatórios um dia vistos! |
Envolvida no turbilhão, a anacrônica Justiça brasileira ainda não dispõe dos meios legais necessários para afrontar as enxurradas das mentiras e falsas informações e interpretações despejadas sobre o povo, não acostumado à leitura de jornais e ao exercício da triagem das notícias por falta de formação cultural, além de sujeito à influência mais próxima dos seus gurus religiosos.
Para complicar, os beneficiários do caos informativo criado pelas redes sociais se defendem recorrendo ao alicerce da democracia que é o direito à livre expressão. Mas, tal liberdade será mesmo total?
O colunista Jânio de Freitas, da Folha de S. Paulo, com sua experiência de um dos editores da antiga Última Hora do Rio de Janeiro durante os anos da ditadura, expressa suas dúvidas (vide aqui), que são também minhas.
Distante do Brasil, onde as redes sociais são dirigidas agora à destruição do Supremo Tribunal Federal, depois de eleger o presidente, com o objetivo não declarado mas pressentido de criar clima para um novo golpe, prefiro contribuir me referindo à experiência recente da Justiça francesa.
O negacionista Alain Soral recebeu condenação exemplar |
Neste sentido, vem a calhar a recente condenação, pela Corte Suprema francesa, de um reincidente negacionista do Holocausto (Alain Soral, conhecido militante da extrema-direita francesa), por suas declarações racistas e antissemitas, mascaradas como anti-sionistas, negando que os nazistas tenham praticado um extermínio sistemático de judeus.
Ao contrário do Brasil, onde, ao que parece, não existe um instrumento legal, uma lei, capaz de proteger o STF contra os ataques, há na França uma lei reconhecendo a existência do Holocausto (mesmo porque milhares de franceses foram vítimas) e punindo quem procura diminuir o impacto dos crimes nazistas com sua negação. Tal lei possibilita a ação judiciária.
Compreende-se também o porquê de uma infeliz declaração do presidente Bolsonaro, dizendo ser possível perdoar o Holocausto, ressoou muito mal em Israel e em todos os países que punem os negacionistas.
É que o perdão leva ao esquecimento, mas o Holocausto nunca deverá ser esquecido, para assim evitar-se sua repetição.
É que o perdão leva ao esquecimento, mas o Holocausto nunca deverá ser esquecido, para assim evitar-se sua repetição.
M'Bala e Faurisson fazendo humor com o Holocausto |
Ainda na França, um artista e humorista que se tornou amigo de Alain Soral costuma utilizar seus one man shows para negar o Holocausto e afirmar seu antissemitismo. Há alguns anos, num show na prestigiosa sala Zenith, Dieudonné M´Bala M´Bala homenageou um notório neonazista francês, Robert Faurisson, com o prêmio de Insolência, entregue no palco por um ator trajando a roupa dos deportados judeus em Auschwitz, e pediu para o público aplaudir.
Condenado a uma multa pesada por injúria de caráter racial, Dieudonné apelou à Corte Européia de Justiça, argumentando tratar-se de um espetáculo no qual se serviu da sua liberdade artística de expressão. E a corte deu uma resposta àquela nossa pergunta inicial, sobre se a liberdade de expressão é uma liberdade total.
Vejamos. Para a Corte Européia de Direitos Humanos, invocar a liberdade de expressão numa tal situação (a de ridicularizar o Holocausto e suas vítimas) constitui um abuso de direito. Segundo o tribunal, Dieudonné tentou deturpar a compreensão da Convenção Européia dos Direitos Humanos, de sua letra e de seu espírito.
Já que tocamos na questão dos crimes contra a humanidade, como foi o Holocausto, podemos, por comparação e aproximação, lembrar os crimes cometidos pelo aparelho repressivo militar durante os 21 anos da Ditadura no Brasil.
E disso inferir que existem no Brasil pessoas e entidades que negam o golpe de 64 e a ditadura militar. São os nossos compatriotas negacionistas, um dos quais chegou a homenagear o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, do Doi-Codi, numa sessão extraordinária do Congresso Nacional transmitida para toda a população brasileira.
Aqui se pode impunemente negar as torturas ditatoriais |
Esse ato de apoio a um torturador e o negacionismo do golpe e da ditadura militar não foram punidos. No caso da homenagem ao torturador porque faltou uma denúncia à Justiça; no caso do negacionismo porque não existe uma lei a respeito. Fica a sugestão aos legisladores para uma época mais propícia.
Enfim, retornando às redes sociais e ao debate sobre os limites à liberdade de expressão, qual foi a decisão da Declaração dos Direitos Humanos e dos Cidadãos da Revolução Francesa em 1789? Sintetizando, “todo cidadão pode falar, escrever e imprimir livremente”.
Porém, com o tempo a liberdade de expressão foi tendo seus limites, não incluindo a difamação, a injúria, a provocação ao ódio (que inclui o racismo e o antissemitismo) e a apologia do terrorismo.
Há uma diferença nítida entre a proteção das pessoas e as críticas relacionadas com crenças religiosas ou posições políticas. E não existe mais no Direito francês o delito da blasfêmia, razão pela qual a revista satírica Charlie Hebdo pode ironizar as religiões, sem correr o risco de condenação. Pode-se caçoar, ironizar os sinais, as representações e os ritos de qualquer religião sem estar sujeito a uma pena. O que se pune é a apologia do terrorismo.
É provável que, na atual legislatura brasileira, os deputados e senadores criem leis repressivas relacionadas com o chamado respeito às religiões, com censura de livros, peças teatrais, filmes e processos aos autores de artigos antirreligiosos na imprensa ou internet. Mais um retrocesso a se temer. (por Rui Martins)
2 comentários:
Celso,
Acho que há certo exagero nessa narrativa de que grupos organizados são responsáveis pelas últimas derrotas da esquerda na política mundial. Soa mais como uma desculpa. A internet é apenas um meio de circular informações, e boataria sempre houve nas eleições, estando apenas potencializada hoje.
As informações circulam em meios em que já seriam permeáveis. Um sujeito convictamente antipetista, por exemplo, não se daria sequer ao trabalho de ler uma notícia contrária ao Bolsonaro nas últimas eleições, recebida por whatsapp, e vice-versa. O que a esquerda tem tratado como movimentos organizados de disseminação de "fake news", algo não provado, me parece ser o bom e velho boato, espalhado agora por milhões de pessoas comuns através de suas redes sociais, voluntariamente, a favor de um e de outro lado. Por mais que se deva condenar a mentira, se as notícias inventadas contra o Haddad circularam muito, é porque as pessoas queriam ler esse tipo de coisa, é porque o antipetismo estava muito arraigado no eleitorado em 2018.
Com o STF parece ser mesma coisa. Até agora não se provou nem de longe que há uma grande orquestração para difamar a instituição. O que existe são milhões de pessoas xingando o STF nas redes, por discordar do modo de agir de seus ministros, e de outro lado um inquérito claramente inconstitucional, em que os juízes se arvoram de investigadores.
A questão que me parece mais relevante é entender porque as pessoas (comuns) não se importam em espalhar conteúdo falso sem verificá-lo.
Abraço,
Daniel.
Daniel,
a única investigação séria sobre o bombardeio de fake news foi a jornalística, já que a Justiça Eleitoral deixou para quando as galinhas criarem dentes.
E a investigação jornalística PROVOU que houve doações substanciais para a empreitada e um esquema profissional para maximizar a difusão da propaganda enganosa gerada pelo esquema goebbeliano do Bolsonaro.
O abuso de poder econômico e a difusão maciça de falsidades eram crimes suficientemente graves para invalidarem o resultado eleitoral.
O resumo da ópera é que, ou o plano neofascista de conquista do poder se liquefaz por si mesmo, ou as Forças Armadas serão a única instituição capaz de evitar o pior.
Os comunistas alemães não perceberam o horror que estavam enfrentando e o resultado foi dos mais trágicos. Não podemos repetir o erro deles.
Abs.
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