sábado, 28 de abril de 2018

APOLLO NATALI: "A VIDA EM DUAS LETRAS"

São apenas duas. Perceba como estão abraçadinhas: .

Atenção para a definição dessas duas minúsculas criaturas que se agarram. Fé é  certeza de benesses, de afetos, de conquistas que não se veem.  De alcançar, no momento ainda ocultas, sonhadas melhoras na caminhada  pedregosa da estrada da existência. 

Tal bela a forma, tão forte a mística grandeza dessas duas vogais de som simples. É som misturado aquele das suas irmãs, as consoantes.  
Com uma declarada convicção, o dançarino compulsivo arrasta o seu ímpeto de viver para o ócio de pouco preço nos salões dourados. Acredita  encontrar um dia a parceira ideal  para seus felizes rodopios. E outra e outra e mais outra em seu livre bater de asas vida afora.  Ah, encontra.

A vida de bilhões de seres da espécie humana, assim é, fervorosa. 

Escudadas em duas letrinhas,  efe e e,  multidões sustentam-se de pé em meio às mais atrozes misérias materiais e sufocantes angústias existenciais. De frente para as mais variadas contrariedades impostas pelo viver. Sobrevivem, vencedoras, com seus exércitos de dois soldados.

Meu pai ganhava mal, sete filhos pequenos, todos nós espremidos em quarto e cozinha de um cortiço com 22 famílias e suas dúzias e dúzias de crianças. O dinheirinho do paizão, todo  para o aluguel. Caro, impiedoso aluguel.

Crianças são como formigas para comer. O milagre de pôr comida na mesa três vezes por dia cabia à minha mãe.  Lavava roupa para fora depois de oito horas de trabalho na fiação e tecelagem.  Chegava a desmaiar na rua. Vivia a dizer: Deus proverá. A tal da fé em Deus.

Não sabia escrever. Só ler. Lia mais que seu filho jornalista, aqui. Fazia palestras na igreja. Criou os sete filhos em ambiente religioso puritano. Fé para todo lado.

Veja na figura a foto da assinatura de seu nome que minha mãe desenhou  na minha bíblia. O grande livro que ela me deu.

Sobre aqueles que morrem sem pôr em dia seus sonhos, pois há neste imenso hotel planetário também irrealizáveis  imaginações sem fundamento, ela dizia: morreu na fé. Mas fez o certo: viveu na fé. 

Para aqueles que preferem as bênçãos caídas dos céus, de graça, ela ria: é preciso levantar  da cadeira e trabalhar para conseguir.

Um dia minha mãe falou: meu Deus, não tenho roupa. Meu único vestido acabou. Com fé,  emendou:  Deus proverá.
E ela saiu à rua. E o vento era forte. E a rodar, e a rodar, no céu, um vestido. Que deve ter se soltado de algum varal e desceu, e desceu e desceu e caiu feito um balão e foi parar em cima dela. 

Uma rainha vestida com seu esplêndido manto em seu palácio de fé. O referido é verdade. E  dou fé. (por Apollo Natali)

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