Um excelente livro de Dino Buzzati, que foi levado às telas (*) magnificamente por Valerio Zurlini em 1976, ajuda bem mais a entendermos a mentalidade militar do que a montoeira de textos alarmistas em circulação nas redes sociais desde que um general sem tropas desembestou a falar inconveniências golpistas para os maçons. Trata-se de O deserto dos tártaros.
Começa com um jovem oficial indo iniciar sua carreira numa fortaleza perdida no meio do nada, cuja única utilidade é servir como primeira linha de defesa contra uma invasão dos tártaros que ninguém sabe ao certo se um dia será tentada ou não.
Mostra aqueles infelizes consumindo suas vidas numa espera sem fim, sonhando com a aparição dos inimigos que daria sentido ao seu sacrifício e procurando preencher o tempo da melhor forma possível.
Quando chega o momento de trocarem posto tão sem atrativos por alguma unidade melhor, quase todos preferem ficar, sempre na esperança de que os tártaros e o fragor das batalhas estejam próximos. Fazem planos, tomam medidas na suposição de que um dia venham a se justificar e esperam. Esperam. Esperam.
Os altos escalões privam cada vez mais a fortaleza de recursos e homens, mas não a ousam desativar por completo. A jornada dos efetivos remanescentes se torna cada vez mais penosa, cada um cumprindo as tarefas de dois ou três. Ainda assim, esperam.
Até que, quando os tártaros finalmente surgem, o outrora jovem oficial está sendo conduzido numa ambulância de volta para a civilização, doente e envelhecido. Desperdiçara sua vida adulta inteira e a miragem que perseguia, dissipou-se no momento em que estava prestes a alcançá-la.
Num país que não trava guerras desde que seus pracinhas foram servir de bucha de canhão na luta contra o nazifascismo nos campos de batalha da Itália, o que faz o Alto Comando do Exército? Uma infinidade de planos de contingência para invasões de tártaros, tipo como reagir a uma incursão paraguaia ou o que fazer se a Venezuela se esfarelar.
No meio de tudo isso, certamente terão estudado linhas de ação para o caso de ocorrer um vazio de poder em nosso país, o que não passaria de outra invasão de tártaros a lhes ocupar o tempo ocioso. Nada indica que haja uma verdadeira articulação golpista em curso, como havia no início dos anos 60, quando o golpe foi tentado já na renúncia do Jânio Quadros (25 de agosto de 1961), fracassou mas deixou lições valiosas para os conspiradores melhorarem seu desempenho na chance seguinte, o 1º de abril de 1964 (a pior mentira já socada goela dos brasileiros adentro!).
A seis meses de trocar a farda pelo pijama, relegado a uma atividade burocrática para não contaminar a tropa com seus delírios, o general Antonio Hamilton Mourão recebeu finalmente alguma atenção, graças a um convite da Maçonaria com todas as característica de provocação. E, claro, desandou a falar o que deveria estar entalado na sua garganta há quase dois anos.
O sensato seria os civis não o levarmos a sério, pois na caserna também ele está longe de representar o sentimento das fileiras, tanto que sua punição no final de 2015 suscitou um pouco de blablablá e nenhuma reação efetiva.
Mas, os que querem exatamente criar um clima golpista, estão investindo na tempestade em copo d'água.
Outros, paradoxalmente, temem uma quartelada, querem alertar contra ela, colocam suas apreensões em artigos... mas acabam cumprindo o papel de inocentes úteis, ao darem quilometragem a uma pseudo-crise que tem, isto sim, de ser esvaziada. Já se falou nela muito mais do que o justificável.
As pressões dos paisanos por punição são praticamente a única possibilidade de o general Antonio Hamilton Mourão tornar-se influente na caserna, pois a corporação tende sempre a ser solidária com os seus que estão sob fogo externo.
Deixarmos as coisas como o comandante do Exército decidiu, com a anuência do ministro da Defesa, fará com que o factoide seja rapidamente superado, sem maiores consequências.
A insistência em superdimensionar-se a incontinência do veterano ultradireitista pode gerar uma crise militar onde até agora não havia nenhuma.
As coisas já andam suficientemente ruins, por que piorá-las em função de fantasmas tão remotos quanto os tártaros do livro do Buzzati?
Um comentário:
Digamos que os militares resolvam assumir, o que farão depois?
Terão no primeiro momento apoio dos mesmerizados que acreditam ser a corrupção o maior dos nossos males. Porém, precisamos lembrar que a grande maioria desses é da ralé. Necessita do sistema de proteção social público, principalmente da previdência social. Se for para manter o programa dos golpistas de plantão, principalmente a tal reforma, esta provável base de apoio começa a erodir de imediato.
Para contrabalançar o revés de popularidade nas questões econômicas, terá que compensar com o conservadorismo cultural e moral. Coisa que colocará o Brasil no patamar das Filipinas, do Duterte, com uma diferença, aquele foi eleito.
Teremos também os efeitos colaterais nesta era de redes sociais. Um golpe militar sem imagens chocantes não existe. O que realimentará em determinados grupos novas reações. Para uma ditadura militar, em Estados falidos ou semi, o que é nosso atual caso, manter alguma estabilidade é preciso um padrinho rico. Daqueles que dá mesada sem cobrar o pagamento em espécie. Coisa que ocorre atualmente nas relações do Egito com a Arábia Saudita. Como a nossa economia é muito maior e mais complexa que a egípcia não vejo ninguém com recursos a fundo perdido para prover o pão dos miseráveis e os manter conformados. (No caso específico do Egito: o papel desempenhado pela irmandade muçulmana de assistencialismo foi assumido pelos sauditas. O bando do Morsi era bancado pelo Catar e pela Turquia).
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